[...] De
Douglass a Obama, passando por Martin Luther King, um fio antirracial percorre
dois séculos da história dos EUA. Os três, em circunstâncias distintas,
ergueram-se como arautos do princípio da igualdade e insistiram em interpretar
a nação americana por esse prisma. Contudo, uma poderosa corrente da história
americana articulou-se em torno do mito da raça, isto é, do princípio da
diferença, não da igualdade. Douglass combateu a escravidão e triunfou, mas,
antes ainda de morrer, assistiu à edição das primeiras leis de segregação
racial. Luther King insurgiu-se contra as leis segregacionistas e também
triunfou, mas, na hora de seu assassinato, o mito da raça já ressurgia com todo
o vigor sob a forma paradoxal das políticas de discriminação reversa. Obama
separou-se das políticas de preferências raciais e deu um passo adiante,
definindo-se como um mestiço, num país que continuava a classificar os cidadãos
segundo critérios de raça.
[...] "Afro-americanos": a expressão,
inventada junto com o multiculturalismo, não é mais que um reflexo pós-moderno
da antiga visão da África como pátria de uma raça. Foi precisamente essa visão,
importada do racismo clássico, que orientou a corrente predominante do
movimento negro nos EUA, antes e depois de Luther King. É ela, igualmente, que
sustenta os projetos de políticas de preferências raciais no Brasil dos nossos
dias. A relação entre a cor da pele e uma origem racial e geográfica está
presente, como não poderia deixar de ser, na própria África. Mia Couto,
escritor moçambicano, discute a contrariedade de jovens de seu país com a
atitude identitária do célebre ex-futebolista Eusébio da Silva Ferreira,
nascido em Moçambique e herói da seleção portuguesa na Copa do Mundo de 1966,
que se declara português de nacionalidade e coração: O caso de Eusébio pode ser
revelador de outros fantasmas. A pergunta é: por que razão os africanos pretos
não se podem converter numa outra 'coisa'? Se existem brancos que são
africanos, se existem negros que são americanos, por que os pretos africanos
não poderão ser europeus? O escritor dá um passo à frente: Existem hoje
centenas de milhares de pretos que nasceram na Europa. Estudaram, cresceram,
absorveram valores. Converteram-se em cidadãos dos países em que nasceram. A
grande maioria vai viver para sempre nesses países. Terão filhos e netos europeus.
E não podem cair na armadilha de reivindicar um gueto, uma espécie de cidadania
de segunda classe que toma o nome de "afroeuropeu". Raça é,
precisamente, a reivindicação de um gueto. O nome desse gueto é ancestralidade.
A vida de um indivíduo que define o seu lugar no mundo em termos raciais está
organizada pelos laços, reais ou fictícios, que o conectam ao passado. Mas a
modernidade foi inaugurada por uma perspectiva oposta, que se coagula nos
direitos de cidadania. Os cidadãos são iguais perante a lei e têm o direito de
inventar seu próprio futuro, à revelia de origens familiares ou relações de
sangue. A política das raças é uma negação da modernidade. Entretanto, a
negação multiculturalista da modernidade é um fenômeno mo- derno. A
"ciência das raças" nasceu no final do século xviii, junto com a
Revolução Francesa e a consolidação do conceito de cidadania, e se desdobrou na
forma de depravações extremadas até a Segunda Guerra Mundial. As políticas de
preferências raciais disseminaram-se no pós-guerra, não muito depois da
proclamação solene da Declaração Universal dos Direitos Humanos e do repúdio
mundial ao racismo nazista. A mensagem do multiculturalismo é que o princípio
da igualdade pode ser uma bela declaração, mas a realidade verdadeira é formada
pelas diferenças essenciais entre as coletividades humanas. O "racismo
científico" plantou as raças no solo da natureza, definindo-as como famílias
humanas separadas pelas suas essências biológicas. Quando a ciência
desmoralizou essa crença anacrônica, o multiculturalismo replantou as raças no
solo da cultura. O argumento dos multiculturalistas, expresso sob formas
diversas mas bastante similares, é que as raças são entidades sociais e
culturais. Com base nisso, a política das raças, que parecia condenada a
desaparecer na hora da aber- tura dos campos de extermínio nazistas, ressurgiu
triunfante nos mais diferentes pontos do planeta. A produção de raças não exige
distinções de cor da pele. Basta - como sa- bem os nigerianos, os quenianos e
os ruandeses - a elaboração de uma narrativa histórica organizada a partir de
cânones étnicos e, crucialmente, a inscrição dos grupos raciais nas tábuas da
lei. A distribuição de privilégios segundo critérios de etnia ou raça grava nas
consciências o senso de pertinência racial. A raça é uma profecia
autorrealizável. As raças se apresentam, invariavelmente, como entidades muito
antigas, com raízes fincadas na primavera dos tempos. De fato, elas são
construções identitárias modernas ou, no mínimo, reelaborações recentes de identidades
difusas de um passado mais profundo - como sabem os indianos, os malasianos e
os bolivianos. A raça é fruto do poder de Estado que rejeita o princípio da
igualdade entre os cidadãos. As políticas americanas de ação afirmativa baseadas
na raça serviram de modelo para a África do Sul e o Brasil. Na África do Sul, o
princípio da diferença racial, fixado nas leis e nas consciências desde a
colonização até o regime do apartheid, forneceu o quadro lógico para as novas
políticas preferenciais do black economic empowerment. No Brasil, ao contrário,
o princípio da igualdade política encontra amparo na poderosa narrativa
identitária da mestiçagem, que borrou as fronteiras de raça. Mesmo assim, em
nome do multiculturalismo, o governo de Fernando Henrique Cardoso ensaiou
dividir os cidadãos em "brancos" e "negros", e o governo de
Luiz Inácio Lula da Silva patrocinou a introdução das primeiras leis raciais da
história brasileira. No último ano do século xx, os cientistas que sequenciaram
o genoma humano declararam a morte da raça. O mito da raça, entretanto, no
lugar de se dissolver como uma crença anacrônica, algo parecido com a antiga
crença em bruxas, persiste ou renasce na esfera política, desafiando a utopia
da igualdade. É como se dissessem a Douglass que o 4 de Julho jamais poderá ser
o seu dia.
[...] O deputado federal Chico Alencar, uma
liderança do psol, partido situado à esquerda do PT, relatou um projeto de lei
de autoria da senadora Roseana Sarney, herdeira do clã do ex-presidente José
Sarney. Na sua forma original, o projeto determinava a fixação de três datas
comemorativas para os "segmentos étnicos nacionais": o Dia do Índio,
19 de abril, em homenagem aos "povos autóctones"; o Dia do
Descobrimento, 22 de abril, dedicado à chegada do "branco europeu"; o
Dia da Consciência Negra, 20 de novembro, consagrado a "celebrar o
negro". O substitutivo proposto pelo relator em 2007 não alterava a
natureza do projeto, mas conferia-lhe tonalidades "combativas",
renomeando o 19 de abril como Dia de Luta dos Povos Indígenas e transformando o
20 de novembro em feriado nacional.8 Há uma lógica férrea no pensamento racial,
que funciona como alicerce subterrâneo do projeto de lei da improvável dupla
Sarney-Alencar. Essa lógica pode ser expressa assim: uma raça só ganha
existência no interior do grande painel das raças - isto é, o "negro"
precisa do "branco" para ser negro, e vice-versa. A "consciência negra", quando incrustada na letra da lei, conduz em algum momento
à manufatura legal de uma "consciência branca". De fato, para todos
os efeitos, a novidade do projeto das datas étnicas encontra-se na produção de
um "Dia do Branco" como complemento racialista indispensável do
"Dia do Negro". As nações, como explicaram os historiadores Terence
Ranger e Eric Hobsbawm, são fábricas de "invenção das tradições". A
narrativa do "encontro das três raças", construída ao longo de cem
anos, entre a independência e o início do século xx, configura um mito imaturo,
inacabado, aberto à interpretação do futuro. Inicialmente, ele foi
preenchido pela proposição da harmonia. Depois, a crítica histórica evidenciou
a dor e a opressão como elementos nucleares do sistema escravista, bem como o
lento genocídio fragmentário que dizimou os povos indígenas. Mas nada disso
abalou os alicerces de um mito fundamentalmente antirracial que, desde a
metáfora da confluência dos rios, propiciou à nação uma utopia positiva. Visto
superficialmente, o projeto de lei inscreve-se na linha de continuidade do mito
original. Mas, na verdade, o seu significado é o oposto disso: a instituição de
três datas étnicas associadas a grupos raciais representa uma negação da
mistura de águas anunciada por Martius. Os rios celebrados pelo projeto de lei
são cursos d'água paralelos, que drenam terras contíguas, mas nunca se encontram.
Não há nada de fortuito na proposição emanada dos esforços combinados dos dois
parlamentares situados em lugares aparentemente tão distantes no espectro
político. Ela reflete a reação ideológica contra a narrativa da mestiçagem e, no
fim das contas, coagula a imagem de um país reinventado como espaço geopolítico
onde coexistem nações distintas, separadas pelo sangue. No Brasil, as pesquisas
sobre atitudes diante do racismo oferecem resultados curiosos e, ao mesmo
tempo, esclarecedores. Diversas enquetes revelam que uma vasta maioria dos
brasileiros admite a existência de discriminação racial no país, especialmente
em episódios de operações policiais nas periferias e favelas. Entretanto, ao
mesmo tempo, maiorias muito expressivas declaram não nutrir preconceito racial.
O antropólogo Peter Fry menciona uma pesquisa respeitada na qual 87% dos
entrevistados que se declaravam "brancos" e 91% dos que se designavam
"pardos" afirmavam não ter preconceito nenhum contra
"negros". Na mesma pesquisa, 87% dos que se definiam como
"pretos" negavam nutrir preconceito contra "brancos". Mais
interessante ainda: 64% dos "pretos" e 84% dos "pardos"
declararam nunca ter sido alvos de preconceito racial. O paradoxo aparente
expresso nas pesquisas não encontra explicação na moldura lógica do
racialismo, que só pode negar a sinceridade das respostas incongruentes com a
sua teoria social. Mas, fora do quadro do racialismo e admitindo-se a validade
das respostas, as pesquisas indicam que a discriminação racial no Brasil é
percebida como um fenômeno bastante minoritário, ainda que algumas de suas
manifestações sejam intensas. O exemplo notório de uma dessas manifestações é a
seleção, por agentes policiais, de jovens de pele mais escura como suspeitos
prévios de atos ilícitos. Um informante branco ofereceu aos sociólogos
Florestan Fernandes e Roger Bastide um diagnóstico já célebre: "Nós,
brasileiros, temos preconceito contra ter preconceito." A afirmação,
interpretada pelos racialistas, seria um indício dos males ocasionados pelo
"mito" - no sentido vulgar, de mentira ou ocultação - da
"democracia racial". A tarefa consistiria em riscar não o preconceito
racial, mas o "preconceito contra ter preconceito", de modo a
permitir a emersão de um confronto de interesses raciais. Mas, efetivamente, a
afirmação indica que o "mito" - no sentido antropológico de utopia
coletiva - da "democracia racial" conduz a atitudes antirracistas,
crismando o preconceito como algo intolerável. É uma plataforma inigualável, se
a meta for a edificação de uma democracia cega para a cor da pele dos cidadãos.
Os brasilianistas do pós-guerra, embalados pela visão da declaração antirracista da Unesco de 1950, descreveram o Brasil como um país que, apesar de suas
gritantes desigualdades, escolhera um rumo diferente daquele dos eua e não erguera muralhas identitárias entre grupos raciais. O historiador britânico
Timothy Garton Ash não é um brasilianista, mas visitou o Brasil no auge do
entusiasmo governamental pelas políticas multiculturalistas e deixou o seguinte
testemunho: Estou consciente [...] de
que corro o risco de parecer um forasteiro rico e branco [...] que se aventura nas favelas durante uns dias
e exclama: "Que bonitos são todos!". Eu mesmo poderia escrever a
sátira correspondente. Mas não tenho alternativa senão dizê-lo: o que
vislumbrei no Brasil, inclusive em meio à pobreza e à violência da Cidade de
Deus, é a beleza da mestiçagem. Aprendi a exaltá-la seguindo o exemplo dos
próprios brasileiros. E essa mistura é precisamente o que contribuiu para que
estejam entre os seres humanos mais belos do pla- neta. O que aqui se anuncia -
mas, insisto: se, e apenas se, o Brasil for capaz de corrigir seus espantosos
desequilíbrios sociais e econômicos e um legado de discriminação - é a
possibilidade de um mundo em que a cor da pele não seja mais que um atributo
físico, sem mais, como a cor dos olhos ou a forma do nariz, e que se possa
admirá-lo, mencioná-lo ou fazer piada sobre ele. Um mundo em que a única raça
importante seja a raça humana. A polêmica sobre as políticas de raça remete a
uma questão de fundo sobre o projeto nacional brasileiro. No fim das contas, os
arautos do multiculturalismo estão dizendo que o Brasil fracassou
historicamente como nação e deve começar de novo, reinventando-se desde o
início, pelo cancelamento do mito de origem da confluência dos rios. Eles estão
dizendo que a mestiçagem é uma mentira abominável - e que o Brasil foi erguido
sobre essa mentira. Inversamente, os críticos das políticas raciais pensam que
há algo de muito positivo, para toda a humanidade, no projeto nacional do
Brasil. Os brasileiros não aprenderam a separar as pessoas segundo o cânone do
mito da raça. Nós imaginamos que as águas podem - e devem! - se misturar. Que a
única raça importante é a raça humana.
UMA GOTA DE SANGUE – O livro Uma gota de sangue:
história do pensamento racial, do sociólogo Demétrio Magnoli trata desde a
condição do ex-escravo Frederik Douglass se tornar um dos mais importantes
abolicionistas dos EUA, sob a influencia de Lysander Spooner, como da
classificação, ordenamento, hierarquia, taxonomia da espécie humana, o
surgimento do racismo científico, a teoria da recapitulação de Haeckel, a
divisão por raças de Alexis Tocqueville, o conceito de desigualdade essencial
entre os homens, o principio iluminista da igualdade, do fardo do homem branco
de Rudyard Kipling, da ontogênese recapitulando a filogênese, a teoria das
raças inferiores de Eward Dinker Cope de que negros, muleres europeias
meridionais e pobres são incapazes, os caracteres adquiridos pelos uso e desuso
de Herbert Spencer, , Darwin e Lamarck, o positivismod e Lewis H. Morgan, a
teoria da evolução culytural, a teoria do uomo delinquente de Cesare Lombroso e
a antropologia criminal, o atavismo criminal, Proudhon e o censo de Charles
Hirschman, o nacional e o estrangeiro, o mito do sangue e a religião de sangue,
ariosofia, os protocolos dos sábios de Sião, a eugenia de Galton, as ideias de
Hitler de que os judeus parasiam as nações, a lei para prevenção da
descendência hereditária, a eutanásia, o movimento de higiene racial alemão, a
teoria da regeneração de Morel, a teoria da linguagem religiosa, a teoria da
degeneração e da higienel racial, o principio de diferenciação e o principio da
igualdade de oportunidade, a miscigenação, o novo colosso de Emma Lazarus, a
regra da gota de sangue única, Gobineau e o racismo cientifico do séc. XIX, a
trajetória do racismo, do multiculturalismo e das campanhas antiracistas, até o
advento das quotas por meio do fardo do homem branco: uma história de sangue, a
ciência das raças, uma missão na África, classificando os nativos, a nação como
linhagem, Hitler e a crise da raça, Leis de Nuremberg, a raça rejeitada, a
revolta de Soweto, o triunfo do multiculturalismo, One drop rule? Loving dat,
preto no branco, índio morto e índio posto, back to Áfica, o império contra o
tráfico, o sonho pan-africano, os três filhos de Gihanga, o oriente e a
restauração das castas, os filhos do solo, a fábrica de ideologias, a abolição
da abolição, doenças de negros, a cor da pobreza, os rios que se encontram,
entre outros assuntos que envolvem toda a trajetória do preconceito, da
discriminação e do racismo.
REFERÊNCIA
MAGNOLI,
Demétrio. Uma gota de sangue: história do pensamento racial. São Paulo:
Contexto, 2009.
Veja
mais aqui.