[...] Minha impressão é de que o quadro da vida sexual de uma criança
apresentado nessa observação do pequeno Hans está muito de acordo com o relato
que forneci (baseando meus pontos de vista em exames psicanalíticos de adultos)
nos meus Três Ensaios. Mas
antes de entrar nos detalhes dessa concordância, devo tratar de duas objeções
que serão levantadas contra o fato de eu fazer uso da presente análise para
esse fim. A primeira objeção é quanto ao fato de que Hans não era uma criança
normal, mas (como os eventos - a própria doença, de fato - mostraram) tinha uma
predisposição para a neurose, e era um jovem “degenerado”; seria ilegítimo, portanto,
aplicar-se a outras crianças normais conclusões que talvez pudessem ser
verdadeiras em relação a ele. Devo adiar a consideração dessa objeção, de vez
que ela só limita o valor da observação, e não o anula completamente. De acordo
com a segunda e menos comprometedora objeção, uma análise de uma criança
conduzida por seu pai, que foi instilado ao trabalho com meus pontos de vista teóricos e
infectado com meus preconceitos, deve ser inteiramente desprovida de qualquer
valor objetivo. Uma criança, dirão, é necessariamente muito sugestionável, e
muito mais por seu próprio pai do que talvez por qualquer outra pessoa; ela
permitirá que qualquer coisa lhe seja forçada, por causa da gratidão a seu pai
por lhe dar tanta atenção; nenhuma das suas afirmações pode ter qualquer valor
de evidência, e tudo o que ela produz sob a forma de associações, fantasias e
sonhos tomará, naturalmente, a direção para a qual está sendo pressionada por
todos os meios possíveis. Mais uma vez, em suma, a coisa toda é simplesmente
`sugestão’ - a única diferença é que, no caso de uma criança, ela pode ser
desmascarada muito mais facilmente do que no caso de um adulto. Coisa singular.
Lembro-me, quando comecei a me intrometer no conflito de opiniões científicas
há vinte e dois anos atrás, de com que zombaria a geração mais velha de
neurologistas e psiquiatras dessa época recebeu as afirmações sobre a sugestão
e seus efeitos. Desde então a situação mudou fundamentalmente. A aversão
original converteu-se numa aceitação por demais pronta; e isso aconteceu não só
como consequência da impressão que o trabalho de Liébeault e Bernheim e de seus
alunos não podia deixar de criar no curso dessas duas décadas, mas também
porque desde então se descobriu que grande economia de pensamento pode ser
feita com o uso da chamada `sugestão’. Ninguém sabe e ninguém se importa com o
que seja sugestão, de onde ela vem, ou quando surge - basta que tudo de
estranho na região da psicologia seja rotulado de `sugestão’. Não compartilho
do ponto de vista, que está em voga atualmente, de que as afirmações feitas
pelas crianças são invariavelmente arbitrárias e indignas de confiança. O
arbitrário não tem existência na vida mental. A não-confiabilidade das
afirmações das crianças é devida à predominância da sua imaginação, exatamente
como a não-confiabilidade das afirmações das pessoas crescidas é devida à
predominância dos seus preconceitos. Quanto ao resto, mesmo as crianças não
mentem sem um motivo, e no todo são mais inclinadas para um amor da verdade do
que os mais velhos. Se fôssemos rejeitar a raiz e os ramos das declarações do
pequeno Hans certamente deveríamos estar-lhe fazendo uma grave injustiça. Ao
contrário, podemos distinguir claramente as ocasiões em que ele estava
falsificando os fatos ou guardando-os sob a força compelidora de uma
resistência, as ocasiões em que, estando indeciso, concordava com seu pai (de
modo que aquilo que ele dissesse não fosse tomado como evidência), e as
ocasiões em que, livre de qualquer pressão, ele explodia numa torrente de
informação sobre o que estava realmente acontecendo dentro dele e sobre coisas
que até então ninguém sabia, a não ser ele mesmo. As declarações feitas por
adultos não oferecem maior certeza. É um fato lamentável que nenhum relatório
de uma psicanálise possa reproduzir as impressões recebidas pelo analista
enquanto ele a conduz, e que um sentido final de convicção nunca possa ser
obtido pela leitura sobre ela, mas somente experimentando-a diretamente.
Contudo, essa incapacidade aplica-se em igual grau a análises de adultos. O
pequeno Hans é descrito por seus pais como uma criança alegre, franca, e assim
ele deve ter sido, considerando-se a educação dada por seus pais, que consistia
essencialmente na omissão dos nossos costumeiros pecados educacionais. Enquanto
podia levar avante suas pesquisas num estado de feliz naïvété, sem nenhuma suspeita dos conflitos que estavam para
surgir a partir destas, ele não escondeu nada; e as observações feitas durante
o período anterior à fobia não admitem dúvida ou reserva. Foi com a eclosão da
doença e durante a análise que começaram a aparecer as discrepâncias entre o
que ele dizia e o que ele pensava; isso acontecia em parte porque o material
inconsciente, que ele era incapaz de controlar, de repente se estava forçando
sobre ele, e em parte porque o conteúdo de seus pensamentos provocava reservas
em relação às suas relações com seus pais. Minha opinião imparcial é que essas
dificuldades não resultaram maiores do que em muitas análises de adultos. É
verdade que durante a análise teve que ser contada a Hans muita coisa que ele
mesmo não podia dizer, ele teve de ser apresentado a pensamentos que até então
ele não tinha mostrado sinais de possuir, e sua atenção teve de ser voltada
para a direção da qual seu pai estava esperando que surgisse algo. Isso diminui
o valor de evidência da análise, mas o processo é o mesmo em todos os casos.
Pois uma psicanálise não é uma investigação científica imparcial, mas uma
medida terapêutica. Sua essência não é provar nada, mas simplesmente alterar
alguma coisa. Em uma psicanálise o médico sempre dá a seu paciente (às vezes em
maior e às vezes em menor escala) as ideias conscientes antecipadas, com a
ajuda das quais ele se coloca em posição de reconhecer e de compreender o
material inconsciente. Há alguns pacientes que necessitam mais de tal
assistência e alguns que necessitam menos, mas não há nenhum que passe sem
alguma assistência. Leves distúrbios podem, às vezes, ser levados a um fim
pelos esforços não auxiliados do sujeito, mas nunca uma neurose - uma coisa que
se colocou contra o ego como um elemento estranho a ele. Para obter o melhor de
tal elemento, outra pessoa precisa ser trazida para dentro, e na medida em que
essa pessoa puder auxiliar, a neurose será curável. Se está na própria natureza
de qualquer neurose afastar-se da `outra pessoa’ - e isso parece ser uma das
características dos estados agrupados sob o nome de demência precoce -, então,
por esta razão, tal estado será incurável por quaisquer esforços de nossa
parte. É verdade que uma criança, devido ao pequeno desenvolvimento dos seus
sistemas intelectuais, requer uma assistência especialmente enérgica. Mas,
afinal, a informação que o médico dá ao seu paciente deriva, por sua vez, de
experiência analítica; e, de fato, isso é suficientemente convincente se, à
custa dessa intervenção do médico, ficamos habilitados para descobrir a
estrutura do material patogênico e, simultaneamente, para dissipá-lo. Contudo,
mesmo durante a análise, o pequeno paciente deu sinal de independência
suficiente para colocá-lo acima da acusação de `sugestão’. Como todas as outras
crianças, ele aplicava suas teorias sexuais infantis ao material à sua frente,
sem ter recebido qualquer encorajamento para agir assim. Essas teorias estão
extremamente distantes da mente adulta. Na verdade, nesse caso eu realmente
deixei de avisar ao pai de Hans que o menino seria impelido a aproximar-se do
tema do parto por meio do complexo excretório. Essa negligência da minha parte,
apesar de ter levado a uma fase obscura na análise, foi, todavia, o meio de
produzir uma boa parte de evidência da legitimidade e da independência dos
processos mentais de Hans. Ele se tornou de repente, ocupado com `lumf‘: sem que seu pai, que se
supunha estar praticando sugestão sobre ele, tivesse a menor ideia de como ele
tinha chegado a esse tema, ou o que iria sair daí. Seu pai também não pode ser
sobrecarregado com nenhuma responsabilidade pela produção das duas fantasias do
bombeiro, que surgiram com
o `complexo de castração’ de Hans, adquirido muito cedo. É preciso confessar
aqui que, fora o interesse teórico, ocultei inteiramente do pai de Hans minha
expectativa de que acabaria havendo um pouco de tal conexão, de modo a não
interferir no valor de uma parte de evidência que não vem muitas vezes à
compreensão da pessoa.
[...] O assunto contido nas páginas a seguir será
de duas categorias. Primeiramente, fornecerei alguns extratos fragmentários
oriundos da história de um caso de neurose obsessiva. Esse caso, julgado por
sua extensão, pelos danos de suas consequências e pelo próprio ponto de vista
do paciente a seu respeito, merece ser classificado como um caso relativamente
sério. O tratamento, que durou cerca de um ano, acarretou o restabelecimento
completo da personalidade do paciente, bem com a extinção de suas inibições. Em
segundo lugar, partindo-se desse caso e levando-se em consideração outros casos
que analisei anteriormente, farei algumas assertivas de caráter aforístico,
fora de conexão, sobre a gênese e o mecanismo mais estritamente psicológico dos
processos obsessivos; assim, espero desenvolver as minhas primeiras observações
sobre o assunto, publicadas em 1896.
[...] Aquilo que se descreve oficialmente como uma
`ideia obsessiva’ mostra, por conseguinte, em sua deformação a partir de seu
teor original; vestígios da luta defensiva primária. Sua deformação possibilita
que esta persista, de vez que o pensamento consciente é, pois, impelido a
compreendê-la mal, como se fosse um sonho; isso porque também os sonhos são um
produto da conciliação e da deformação, e são mal compreendidos pelo pensamento
desperto.
[....] A predileção dos neuróticos obsessivos pela
incerteza e pela dúvida leva-os a orientar seus pensamentos de preferência para
aqueles temas perante os quais toda a humanidade está incerta e nossos
conhecimentos e julgamentos necessariamente expostos a dúvida. Os principais
temas dessa natureza são paternidade, duração da vida, vida após a morte e
memória - na qual todos nós costumamos acreditar, sem possuirmos a menor
garantia de sua fidedignidade. Nas neuroses obsessivas, a incerteza da memória
é utilizada em toda a sua extensão como auxiliar na formação de sintomas; e
conheceremos diretamente o papel desempenhado no conteúdo real dos pensamentos
do paciente pelas questões sobre a duração da vida e a vida depois da morte.
Contudo, como uma transição mais adequada, considerarei em primeiro lugar um
vestígio particular de superstição em nosso paciente, ao qual já aludi, e que, sem dúvida, terá confundido a mais de
um de meus leitores.
DUAS
HISTÓRIAS CLÍNICAS – A
obra Duas histórias clínicas – o pequeno
Hans e o homem dos ratos, de Sigmund Freud, trata acerca da análise de uma
fobia em um menino de cinco anos,
abordando o caso clinico e análise, discussão, pós-escrito, e notas sobre um
caso de neurose obsessiva, abordando extrato do caso clínico, o inicio do
tratamento, sexualidade infantil, o grande medo obsessivo, iniciação na
natureza do tratamento, algumas ideias obsessivas e sua explicação, a causa
precipitadora da doença, o complexo paterno e a solução da ideia do rato,
considerações teóricas, algumas características das estruturas obsessivas,
algumas peculiaridades psicológicas dos neuróticos obsessivos, sua atitude
perante a realidade, a superstição e a morte, a vida instintual dos neuróticos
obsessivos e as origens da compulsão e da dúvida, addendum: registro original
do caso e um apêndice com alguns escritos de Freud que tratam da ansiedade, das
fobias em crianças e de neurose obsessiva.
REFERÊNCIA
FREUD, Sigmund. Duas histórias clínicas –
o pequeno Hans e o homem dos ratos. Rio de Janeiro: Imago, 1980.
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