[...] Até então o sexo
feminino não passara para ele de um conceito expresso em mármore ou em bronze,
e nunca prestara a menor atenção às suas representantes contemporâneas.
[...] Agora,
entretanto, a tarefa científica a que se propusera impelia-o na rua,
especialmente nos dias chuvosos, a observar ansiosamente os pés de todas as
mulheres que encontrava, atividade que lhe granjeava olhares ora indignados,
ora encorajadores dos objetos de sua observação, ‘mas ele não percebia nem uns,
nem outros’. (10.) Essa pesquisa meticulosa levou-o a concluir que o modo de
andar de Gradiva não era encontrável na realidade, o que o encheu de desânimo e
consternação.
[...] Chegou à
conclusão de que, de todas as loucuras da humanidade, ‘o casamento é a maior e
a mais incompreensível, sendo o ápice dessa imbecilidade aquelas
despropositadas viagens de núpcias à Itália.
[...] Para a
construção de um sonho não é essencial um vínculo com um estímulo sensorial
externo. Aquele que dorme pode ignorar um estímulo desse gênero a partir do
mundo externo, pode ser despertado pelo mesmo sem construir um sonho, ou, como
aconteceu aqui, pode incorporá-lo a seu sonho, se isto lhe convier por alguma
razão. Além disso, existem inúmeros sonhos cujo conteúdo de forma alguma pode
ser explicado como sendo determinado por um estímulo externo sobre os sentidos
do indivíduo que dorme.
[...] Nos cinco
anos que decorreram desde o término deste estudo, a investigação psicanalítica
encorajou-se a examinar as criações dos escritos imaginativos tendo em vista
outro propósito. Não mais procura nelas somente uma confirmação das descobertas
feitas em seres humanos neuróticos e banais; também quer conhecer o material de
lembranças e impressões no qual o autor baseou a obra, e os métodos e processos
pelos quais converteu esse material em obra de arte. Essas perguntas podem ser
respondidas com maior facilidade no caso de escritores que (como Wilhelm
Jensen, falecido em 1911) costumavam entregar-se inteiramente à sua imaginação
pela simples alegria de criar. Pouco depois da publicação do meu exame
analítico de Gradiva, tentei interessar seu idoso autor por essas novas tarefas
da pesquisa psicanalítica. Ele, porém, recusou sua cooperação.
[...] Não sou certamente
o primeiro a notar a semelhança existente entre os chamados atos obsessivos dos
que sofrem de afecções venosas e as práticas pelas quais o crente expressa sua
devoção. O termo ‘cerimonial’, que tem sido aplicado a alguns desses atos obsessivos,
constitui uma evidência disso. Em minha opinião, entretanto, essa semelhança
não é apenas superficial, de modo que a compreensão interna (insight) da origem do cerimonial
neurótico pode, por analogia, estimular-nos a estabelecer inferências sobre os
processos psicológicos da vida religiosa. As pessoas que praticam atos
obsessivos ou cerimoniais pertencem à mesma classe das que sofrem de pensamento
obsessivo, ideias obsessivas, impulsos obsessivos e afins. Isso, em conjunto,
constitui uma entidade clínica especial, que comumente se denomina de ‘neurose
obsessiva’
[...] Uma mulher
que estava vivendo separada do marido via-se sob a compulsão de deixar intacta
a melhor porção de tudo aquilo que comia: por exemplo, só aproveitava as
beiradas de uma fatia de carne assada. A explicação dessa renúncia foi
encontrada por meio da data de sua origem. Ela surgiu no dia seguinte àquele em
que se recusara a ter relações maritais com seu marido - isto é, após ter
renunciado ao melhor.
[...] O escritor
suaviza o caráter de seus devaneios egoístas por meio de alterações e
disfarces, e nos suborna com o prazer puramente formal, isto é, estético, que
nos oferece na apresentação de suas fantasias. Denominamos de prêmio de estímulo ou de prazer
preliminar ao prazer desse gênero, que nos é oferecido para possibilitar a
liberação de um prazer ainda maior, proveniente de fontes psíquicas mais
profundas. Em minha opinião, todo prazer estético que o escritor criativo nos
proporciona é da mesma natureza desse prazer
preliminar, e a verdadeira satisfação que usufruímos de uma obra
literária procede de uma libertação de tensões em nossas mentes. Talvez até
grande parte desse efeito seja devida à possibilidade que o escritor nos
oferece de, dali em diante, nos deleitarmos com nossos próprios devaneios, sem
auto-acusações ou vergonha. Isso nos leva ao limiar de novas e complexas
investigações, mas também, pelo menos no momento, ao fim deste exame.
[...] Pedem-me que faça
uma relação de ‘dez bons livros’ sem a tal acrescentarem maiores explicações.
Cabe-me assim não somente a escolha dos livros, mas também a interpretação do
pedido. Como estou acostumado a dar atenção a pequenos sinais, devo basear-me
na forma como esse enigmático pedido foi expresso. Não me solicitaram ‘os dez
mais esplêndidos livros (da literatura mundial)’, quando eu seria obrigado a
responder, como tantos outros: Homero, as tragédias de Sófocles, o Fausto de Goethe, o Hamlet e o Macbeth de Shakespeare, etc. Nem me pediram ‘os dez livros mais
significativos’, entre os quais teriam de ser incluídas as realizações
científicas de Copérnico, do velho médico Johann Weier sobre a crença nas
bruxas, a Descendência do Homem
de Darwin, e outros. Nem falaram em ‘livros favoritos’, entre os quais eu não
teria esquecido O Paraíso Perdido
de Milton e o Lázaro de Heine.
Parece-me pairar uma ênfase especial sobre o adjetivo ‘bons’, em sua frase, e
com isso pretenderem os senhores designar aqueles livros que se assemelham a
‘bons’ amigos, aos quais devemos uma parcela do nosso conhecimento da vida e de
nossa visão do mundo - livros que nos deram prazer e que recomendamos de bom
grado a outros, mas que não nos despertam uma particular e tímida reverência,
nem uma sensação de pequenez diante de sua grandiosidade. Indicarei, portanto,
dez ‘bons’ livros que me vieram à mente sem muita reflexão. Multatuli, Cartas e
Obras. Kipling, Jungle Book.
Anatole France, Sur la pierre blanche.
Zola, Fécondité. Merezhkovsky, Leonardo da Vinci. G. Keller, Leute von Seldwyla. C. F. Meyer, Huttens letzte Tage. Macaulay, Essays. Gomperz, Griechische Denker. Mark Twain, Sketches. Não sei o que pretendem
fazer com essa lista.
GRADIVA
DE JENSEN - Na Obra Gradiva de Jensen e outros trabalhos, de
Sigmund Freud, é tratado acerca dos delírios e sonho do conto Gradiva de
Wilhelm Jensen, sobre uma escultura - Gradiva, a jovem que avança -, que o
arqueólogo Norbert Hanold sonha e tem delírios, abordando ainda sobre os
delírios e os ditúrbios mentais e o método analítico de psicoterapia. Em
seguida vem a parte de pós-escrito acerca do tema proposto e outros trabalhos
como a psicanálise e a determinação dos fatos nos processos jurídicos, atos
obsessivos e práticas religiosas e o esclarecimento sexual das crianças. O
ensaio Escritores criativos e devaneio,
aborda sobre Ariosto, o brincar da criança e o escritor criativo, o fantasiar e
os romances de Zola. Depois vem os ensaios sobre as fantasias histéricas e sua
relação com a bissexualidade, o caráter e o erotismo anal, moral sexual
civilizada e doença nervosa moderna, sobre as teorias sexuais da criança,
algumas observações gerais sobre ataques histéricos, romances familiares e
breves escritos sobre os melhores livros indicados por Freud.
REFERÊNCIA
FREUD, Sigmund. Gradiva de Jensen e
outros trabalhos. Rio de Janeiro: Imago, 1980.
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