[...] A misteriosa fragilidade dos
vínculos humanos, o sentimento de insegurança que ela inspira e os desejos
conflitantes (estimulados por tal
sentimento) de apertar os laços e ao mesmo tempo mantê-los frouxos, é o
que este livro busca esclarecer, registrar e apreender.
[...] O principal herói deste
livro é o relacionamento humano. Seus personagens centrais são homens e mulheres,
nossos contemporâneos, desesperados por terem sido abandonados aos seus
próprios sentidos e sentimentos facilmente descartáveis, ansiando pela
segurança do convívio e pela mão amiga com que possam contar num momento de
aflição, desesperados por “relacionar-se” e, no entanto desconfiados da condição
de “estar ligado” em particular de estar ligado “permanentemente” para não
dizer eternamente, pois temem que tal condição possa trazer encargos e tensões que eles não se consideram
aptos nem dispostos a suportar, e que podem limitar severamente a liberdade de
que necessitam para — sim, seu palpite está certo — relacionar-se... Em nosso mundo
de furiosa “individualização”, os relacionamentos são bênçãos ambíguas. Oscilam
entre o sonho e o pesadelo, e não há como determinar quando um se transforma no
outro. Na maior parte do tempo, esses dois avatares coabitam embora em
diferentes níveis de consciência. No líquido cenário da vida moderna, os
relacionamentos talvez sejam os representantes mais
comuns, agudos, perturbadores e profundamente sentidos da ambivalência.
É por isso, podemos garantir, que se encontram tão firmemente no cerne das
atenções dos modernos e líquidos indivíduos-por-decreto, e no topo de sua
agenda existencial. “Relacionamento” é o assunto mais quente do momento, e
aparentemente o único jogo que vale a pena,
apesar de seus
óbvios riscos. Alguns
sociólogos, acostumados a
compor teorias a
partir de questionários, estatísticas
e crenças baseadas
no senso comum,
apressam-se em concluir que seus
contemporâneos estão totalmente abertos a amizades, laços,
convívio, comunidade. De fato,
contudo (como se seguíssemos a regra de Martin Heidegger de que as
coisas só se revelam à consciência por meio da frustração que provocam —
fracassando, desaparecendo, comportando-se de forma inadequada ou negando sua
natureza de alguma outra forma), hoje em dia as atenções humanas tendem a se
concentrar nas satisfações que esperamos obter das relações precisamente
porque, de alguma forma, estas não têm sido consideradas plena e
verdadeiramente satisfatórias. E, se satisfazem, o preço disso tem sido com freqüência
considerado excessivo e inaceitável. Em seu famoso experimento, Miller e
Dollard viram seus ratos de laboratório atingirem o auge da excitação e da
agitação quando “a atração se igualou à repulsão” ou seja, quando a ameaça do
choque elétrico e a promessa de comida saborosa finalmente atingiram o equilíbrio...
Não admira que os “relacionamentos”
estejam entre os principais motores do
atual “boom do aconselhamento”. A
complexidade é densa, persistente e difícil demais para ser desfeita ou
destrinchada sem auxílio. A agitação dos ratos de Miller e Dollard resultava
frequentemente na paralisia da ação. A incapacidade de escolher entre atração e
repulsão, entre esperanças e temores, redundava na incapacidade de agir. De
modo diferente dos ratos, os seres humanos que se vêem em tais circunstâncias
podem pedir ajuda a especialistas que oferecem seus préstimos em troca de
honorários. O que esperam ouvir deles é algo como a solução do problema da
quadratura do círculo: comer o bolo e ao mesmo tempo conservá-lo; desfrutar das
doces delícias de um
relacionamento evitando, simultaneamente, seus
momentos mais amargos e penosos;
forçar uma relação a permitir sem desautorizar, possibilitar sem invalidar,
satisfazer sem oprimir... Os especialistas estão prontos a condescender, confiantes
em que a
procura por suas recomendações será
infinita, uma vez que nada que digam poderá tornar
um círculo não-circular, e portanto passível
de ser transformado
num quadrado... Suas
recomendações são copiosas,
embora geralmente se resumam a pouco mais do que elevar a prática comum
ao nível do conhecimento comum, e daí ao
status de teoria autorizada e erudita.
Gratos beneficiários dessas recomendações percorrem as colunas de
“relacionamento” em publicações sofisticadas e nos suplementos semanais de
jornais sérios ou nem tanto, para ouvir o que queriam de pessoas que “estão por
dentro” (uma vez que são tímidos ou envergonhados demais para falarem por si
mesmos), para espreitar os feitos e procedimentos de “outros como eles”
e conseguir o máximo
conforto possível por
saberem que não estão sozinhos
em seus solitários esforços para enfrentar a incerteza. E assim os
leitores aprendem com a experiência de outros leitores, reciclada pelos
especialistas, que é possível buscar “relacionamentos de bolso” do tipo de que
se “pode dispor quando necessário” e depois tornar a guardar. Ou que os relacionamentos
são como a vitamina C: em altas doses, provocam náuseas e podem prejudicar a
saúde. Tal como no caso desse remédio, é preciso diluir as relações para que se
possa consumi-las. Ou que os
CSSs — casais semi-separados merecem
louvor como “revolucionários do
relacionamento que romperam a
bolha sufocante dos
casais”. Ou ainda
que as relações, da mesma forma
que os automóveis, devem passar por revisões regulares para termos certeza de que
continuarão funcionando bem. No todo, o
que aprendem é que o compromisso, e em particular o compromisso a longo prazo,
é a maior armadilha
a ser evitada no esforço por “relacionar-se”. Um especialista informa aos leitores: “Ao se
comprometerem, ainda que sem entusiasmo, lembrem-se de que possivelmente
estarão fechando a porta a outras
possibilidades românticas talvez mais
satisfatórias e completas”. Outro
mostra-se ainda mais insensível: “A longo prazo, as promessas de compromisso
são irrelevantes. Como outros investimentos, elas alternam períodos de alta e
baixa”. E assim, se você deseja “relacionar-se”, mantenha distância; se quer
usufruir do convívio, não assuma nem exija compromissos. Deixe todas as portas
sempre abertas. Se lhes perguntassem, os habitantes de Leônia, uma das cidades
invisíveis de Ítalo Calvino, diriam que sua paixão é “desfrutar coisas novas e
diferentes”: De fato. A cada manhã eles “vestem roupas novas em folha, tiram
latas fechadas do mais recente modelo de geladeira, ouvindo jingles
recém-lançados na estação de rádio mais quente do momento”. Mas a cada manhã
“as sobras da Leônia de ontem aguardam pelo caminhão de lixo” e cabe
indagar se a verdadeira paixão dos
leonianos na verdade não seria “o prazer de expelir, descartar, limpar-se de
uma impureza recorrente”. Caso contrário, por que os varredores de rua seriam
“recebidos como anjos” mesmo que sua missão fosse “cercada de um silêncio
respeitoso” (o que é compreensível: “ninguém quer voltar a pensar em coisas que
já foram rejeitadas”)? Pensemos... Será que
os habitantes de nosso líquido mundo moderno não são exatamente como os de
Leônia, preocupados com uma coisa e falando de outra? Eles garantem que seu
desejo, paixão, objetivo ou sonho é “relacionar-se”, Mas será que na verdade não estão preocupados
principalmente em evitar que suas relações
acabem congeladas e coaguladas? Estão mesmo procurando relacionamentos
duradouros, como dizem, ou seu maior
desejo é que eles sejam leves e frouxos,
de tal modo que, como as riquezas de Richard Baxter, que “cairiam sobre os ombros como um manto leve” possam “ser postos de lado a qualquer momento”?
Afinal, que tipo
de conselho eles
querem de verdade: como
estabelecer um relacionamento ou
— só por precaução — como rompê-lo sem dor e com a consciência limpa? Não há uma
resposta fácil a essa pergunta, embora ela precise ser respondida e vá continuar sendo feita,
à medida que os habitantes do líquido mundo moderno seguirem sofrendo
sob o peso esmagador da mais ambivalente entre as muitas tarefas com que se
defrontam no dia-a-dia. Talvez a própria ideia de “relacionamento” contribua
para essa confusão. Apesar da firmeza que caracteriza as tentativas dos
infelizes caçadores de relacionamentos e seus especialistas, essa noção resiste
a ser plena e verdadeiramente purgada de suas conotações perturbadoras e
preocupantes. Permanece cheia de ameaças vagas e premonições sombrias; fala ao
mesmo tempo dos prazeres do convívio e dos horrores da clausura. Talvez seja
por isso que, em vez de relatar suas experiências e expectativas utilizando
termos como “relacionar-se” e “relacionamentos” as pessoas falem cada vez mais
(auxiliadas e conduzidas pelos doutos especialistas) em conexões, ou “conectar-se” e “ser conectado”. Em vez de parceiros, preferem falar em “redes”.
Quais são os méritos
da linguagem da
“conectividade” que estariam
ausentes da linguagem dos
“relacionamentos”? Diferentemente de “relações”, “parentescos”, “parcerias” e noções similares — que
ressaltam o engajamento mútuo ao mesmo tempo em que silenciosamente excluem ou
omitem o seu oposto, a falta de compromisso —, uma “rede” serve de matriz tanto
para conectar quanto para desconectar; não é possível imaginá-la sem as duas
possibilidades. Na rede, elas são escolhas igualmente legítimas, gozam do mesmo
status e têm importância idêntica. Não faz sentido perguntar qual
dessas atividades complementares constitui “sua essência”! A
palavra “rede” sugere momentos nos quais “se está em contato” intercalados por
períodos de movimentação a esmo. Nela as conexões são estabelecidas e cortadas
por escolha. A hipótese de um relacionamento “indesejável, mas impossível de
romper” é o que torna “relacionar-se” a coisa mais traiçoeira que se possa
imaginar. Mas uma “conexão indesejável” é um paradoxo. As conexões podem ser
rompidas, e o são, muito antes que se comece a detestá-las. Elas são “relações
virtuais”. Ao contrário dos relacionamentos antiquados (para não falar daqueles
com “compromisso” muito menos dos compromissos de longo prazo), elas parecem
feitas sob medida para o líquido cenário da vida moderna, em que se espera e se
deseja que as “possibilidades românticas” (e não apenas românticas) surjam e
desapareçam numa velocidade crescente e em volume cada vez maior, aniquilando-se
mutuamente e tentando impor aos gritos a promessa de “ser a mais satisfatória e
a mais completa”. Diferentemente dos
“relacionamentos reais” é
fácil entrar e
sair dos “relacionamentos virtuais”. Em comparação com
a “coisa autêntica”, pesada, lenta e confusa, eles parecem inteligentes e limpos, fáceis de usar, compreender e manusear.
Entrevistado a respeito da crescente popularidade do namoro pela
Internet, em detrimento dos bares para
solteiros e das seções especializadas dos jornais e revistas, um jovem de 28 anos da Universidade de Bath
apontou uma vantagem decisiva da relação eletrônica: “Sempre se pode apertar a
tecla de deletar”. Como que obedecendo
à lei de
Gresham, as relações
virtuais (rebatizadas de
“conexões”) estabelecem o padrão que orienta todos os outros
relacionamentos. Isso não traz felicidade aos homens e mulheres que se rendem a
essa pressão; dificilmente se poderia imaginá-los mais felizes agora do que quando
se envolviam nas relações pré-virtuais. Ganha-se de um lado, perde-se de outro.
Como apontou Ralph Waldo Emerson, quando
se esquia sobre gelo fino, a salvação
está na velocidade. Quando se
é traído pela qualidade,
tende-se a buscar
a desforra na
quantidade. Se “os compromissos são irrelevantes” quando as
relações deixam de ser honestas e parece improvável que se sustentem, as
pessoas se inclinam a substituir as parcerias pelas redes. Feito isso, porém,
estabelecer-se fica ainda mais difícil (e adiável) do que antes — pois agora
não se tem mais a habilidade que faz, ou poderia fazer, a coisa funcionar.
Estar em movimento, antes um privilégio e uma conquista, torna-se uma necessidade. Manter-se em alta velocidade, antes uma aventura estimulante, vira uma tarefa cansativa. Mais importante,
a desagradável incerteza
e a irritante
confusão, supostamente escorraçadas
pela velocidade, recusam-se a
sair de cena. A facilidade do desengajamento e do
rompimento (a qualquer hora) não reduzem
os riscos, apenas os distribuem de modo diferente, junto com as
ansiedades que provocam. Este
livro é dedicado aos riscos e ansiedades de se viver junto, e separado, em nosso líquido mundo
moderno.
[...] Os principais alvos do
ataque do mercado são os seres humanos como produtores. Numa terra totalmente conquistada
e colonizada, somente
consumidores humanos poderiam obter permissão
de residência. A difusa indústria familiar das condições de vida
compartilhadas seria posta fora de operação e desmantelada. As
formas de vida, e as parcerias
que as sustentam, só estariam disponíveis como mercadorias. O Estado obcecado com a ordem combateu
(correndo riscos) a anarquia, aquela marca registrada da communitas, em função da ameaça à rotina imposta pelo
poder. O mercado consumidor obcecado
pelos lucros combate essa anarquia devido à turbulenta capacidade produtiva que
ela apresenta, assim como ao potencial para a auto-suficiência que, ao que se
suspeita, crescerá a partir dela. É porque a economia moral tem pouca
necessidade do mercado que as forças deste se levantam contra ela. Nessa guerra
apresenta-se uma estratégia de mão dupla.
[...] Numa
piada irlandesa, quando um motorista
pergunta ao transeunte "como se vai daqui
para Dublin", este lhe responde: "Se eu quisesse ir para
Dublin, não partiria daqui.” Com efeito, pode-se facilmente
imaginar um mundo mais
adequado para a
jornada rumo à "unidade universal da humanidade"
kantiana do que aquele que por acaso habitamos hoje, ao fim da era da trindade
território/nação/Estado. Mas não existe outro mundo, e assim não há outro lugar
de onde se partir. No entanto não iniciar a jornada, ou não iniciá-la logo, não
é — neste caso, sem dúvida — uma opção. A unidade da espécie humana postulada
por Kant pode ser, como ele sugeria, compatível com a intenção da
Natureza, mas certamente
não parece algo
"historicamente
determinado" O continuado descontrole
da rede já global de dependência mútua e
de "vulnerabilidade reciprocamente assegurada" decerto não aumenta a
chance de se alcançar tal unidade. Isso
só significa, contudo, que em nenhuma outra
época a intensa busca por uma humanidade comum, assim como a prática que segue
tal pressuposto, foi tão urgente e imperativa como agora. Na era da globalização, a causa e a política da humanidade compartilhada enfrentam a mais decisiva
de todas as fases que já atravessaram em sua longa história.
O
AMOR LÍQUIDO – O livro O amor líquido: sobre a fragilidade dos
laços humanos, do sociólogo
polonês Zygmunt Bauman, traz
temas como apaixonar-se e desapaixonar-se, dentro e fora da caixa de
ferramentas da sociabilidade, sobre a dificuldade de amar o próximo e convívio
destruído. Na primeira parte, aborda o apaixonar-se e desapaixonar-se a partir
de assuntos que envolvem Charles Baudalaire, Walter Benjamin, a morte e o amor
realizado de Ivan Klima, Heraclito, Malinowiski, Bacon, Platão, Erich Fromm,
Eros, o Messias de Kafka, desejo e amor, Catherine Jarvie, Adrienne Burgess,
relacionamentos como investimentos, o fracasso no relacionamento, impulsos
antropofágicos, a relação de volso é de certa duração com as condições de
entrar no relacionamento consciente e sóbrio e manter do jeito que é, o encantado/viciado
público, Antígona, afinidade, ideologia da intimidade de Sennett, a comunidade
imaginada de Benedict Anderson. Na segunda parte, dentro e fora da caixa de
ferramentas da sociabilidade, trata do homo sexualis abandonado e destituído,
Levi-Straus no encontro dos sexos, a origem da cultural, a scientia sexualis de
Volkmar Sigusch, órfãos de Eros, destituído pelo futuro, a medicina compete com
o sexo pela responsabilidade da reprodução, o filho como um objeto de consumo
emocional, paternidade e o pacote de dores do autossacrifício e os temores de
perigos inexplorados, Fromm e o sexo em si, a liquida racionalidade moderna, o
consumo é caracterizado pelo uso e descarte, os líquidos ambientes modernos: a
subdefinição, a incompletude e a ausência de finalidade da identidade sexual; a
sublimação de Freud, a circularidade de Derrida, communitas em oferta,
qualidade e quantidade, duração pela rapidez, diversão, o Produto Nacional
Bruto (PNB), gastar mais dinheiro é crescer, Bakunin e os valores da ajuda
mútua, a invasão e colonização da communitas. Na terceira parte, sobre a
dificuldade de amar o próximo aborda sobre o amor ao próximo como a si mesmo e
a razão do interesse próprio e a busca da felicidade, a exigência ética de
Logstrup, o relacionamento puro de Anthony Giddens, o mundo de hoje parece
estar conspirando contra a confiança, a imediação da presença e a imediação da
ação, cidade e mudança social, mixofobia e mixofilia no campo de batalha
urbano. Na quarta parte, convívio destruído, trata acerca do espectro de
xenofobia, o lixo humano, exclusão da humanidade, Hannah Arendt, a nova escala
planetária da produção e reciclagem dos problemas, guarnições de
extraterritorialidade como aterros sanitários, a encruzilhada dos refugiados e
as perspectivas sombrias.
REFERÊNCIA
BAUMAN, Zygmunt. O amor líquido: sobre a
fragilidade dos laços humanos. Rio de Janeiro: Zahar, 2004.