segunda-feira, 5 de janeiro de 2015

O AMOR LÍQUIDO, DE ZYGMUNT BAUMAN


[...] A misteriosa fragilidade dos vínculos humanos, o sentimento de insegurança que ela inspira e os desejos conflitantes (estimulados por tal  sentimento) de apertar os laços e ao mesmo tempo mantê-los frouxos, é o que este livro busca esclarecer, registrar e apreender.
[...] O principal herói deste livro é o relacionamento humano. Seus personagens centrais são homens e mulheres, nossos contemporâneos, desesperados por terem sido abandonados aos seus próprios sentidos e sentimentos facilmente descartáveis, ansiando pela segurança do convívio e pela mão amiga com que possam contar num momento de aflição, desesperados por “relacionar-se” e, no entanto desconfiados da condição de “estar ligado” em particular de estar ligado “permanentemente” para não dizer eternamente, pois temem que tal condição possa trazer  encargos e tensões que eles não se consideram aptos nem dispostos a suportar, e que podem limitar severamente a liberdade de que necessitam para — sim, seu palpite está certo — relacionar-se... Em nosso mundo de furiosa “individualização”, os relacionamentos são bênçãos ambíguas. Oscilam entre o sonho e o pesadelo, e não há como determinar quando um se transforma no outro. Na maior parte do tempo, esses dois avatares coabitam embora em diferentes níveis de consciência. No líquido cenário da vida moderna, os relacionamentos talvez  sejam os  representantes  mais  comuns, agudos, perturbadores e profundamente sentidos da ambivalência. É por isso, podemos garantir, que se encontram tão firmemente no cerne das atenções dos modernos e líquidos indivíduos-por-decreto, e no topo de sua agenda existencial. “Relacionamento” é o assunto mais quente do momento, e aparentemente o único jogo que vale a pena,  apesar  de  seus  óbvios  riscos.  Alguns  sociólogos,  acostumados  a  compor  teorias  a  partir  de questionários,  estatísticas  e  crenças  baseadas  no  senso  comum,  apressam-se  em concluir  que  seus contemporâneos estão totalmente abertos a amizades,  laços,  convívio,  comunidade.  De fato,  contudo (como se seguíssemos a regra de Martin Heidegger de que as coisas só se revelam à consciência por meio da frustração que provocam — fracassando, desaparecendo, comportando-se de forma inadequada ou negando sua natureza de alguma outra forma), hoje em dia as atenções humanas tendem a se concentrar nas satisfações que esperamos obter das relações precisamente porque, de alguma forma, estas não têm sido consideradas plena e verdadeiramente satisfatórias.  E,  se satisfazem,  o preço disso tem sido com freqüência considerado excessivo e inaceitável. Em seu famoso experimento, Miller e Dollard viram seus ratos de laboratório atingirem o auge da excitação e da agitação quando “a atração se igualou à repulsão” ou seja, quando a ameaça do choque elétrico e a promessa de comida saborosa finalmente atingiram o equilíbrio... Não admira  que os “relacionamentos” estejam entre os principais  motores do atual  “boom do aconselhamento”. A complexidade é densa, persistente e difícil demais para ser desfeita ou destrinchada sem auxílio. A agitação dos ratos de Miller e Dollard resultava frequentemente na paralisia da ação. A incapacidade de escolher entre atração e repulsão, entre esperanças e temores, redundava na incapacidade de agir. De modo diferente dos ratos, os seres humanos que se vêem em tais circunstâncias podem pedir ajuda a especialistas que oferecem seus préstimos em troca de honorários. O que esperam ouvir deles é algo como a solução do problema da quadratura do círculo: comer o bolo e ao mesmo tempo conservá-lo; desfrutar  das  doces  delícias  de  um relacionamento  evitando,  simultaneamente,  seus  momentos  mais amargos e penosos; forçar uma relação a permitir sem desautorizar, possibilitar sem invalidar, satisfazer sem oprimir... Os especialistas estão prontos a condescender,  confiantes  em  que  a  procura  por  suas recomendações  será  infinita,  uma  vez que nada que digam poderá  tornar  um círculo  não-circular, e portanto  passível  de  ser  transformado  num  quadrado...  Suas  recomendações  são  copiosas,  embora geralmente se resumam a pouco mais do que elevar a prática comum ao nível do conhecimento comum, e daí  ao status de teoria autorizada e erudita.  Gratos beneficiários dessas recomendações percorrem as colunas de “relacionamento” em publicações sofisticadas e nos suplementos semanais de jornais sérios ou nem tanto, para ouvir o que queriam de pessoas que “estão por dentro” (uma vez que são tímidos ou envergonhados demais para falarem por si mesmos), para espreitar os feitos e procedimentos de “outros como  eles”  e  conseguir  o máximo  conforto  possível  por  saberem que não  estão  sozinhos  em seus solitários esforços para enfrentar a incerteza. E assim os leitores aprendem com a experiência de outros leitores, reciclada pelos especialistas, que é possível buscar “relacionamentos de bolso” do tipo de que se “pode dispor quando necessário” e depois tornar a guardar. Ou que os relacionamentos são como a vitamina C: em altas doses, provocam náuseas e podem prejudicar a saúde. Tal como no caso desse remédio, é preciso diluir as relações para que  se  possa  consumi-las.  Ou  que  os  CSSs  — casais  semi-separados  merecem  louvor  como “revolucionários  do  relacionamento  que  romperam a  bolha  sufocante  dos  casais”.  Ou  ainda  que  as relações, da mesma forma que os automóveis, devem passar por revisões regulares para termos certeza de que continuarão funcionando bem.  No todo, o que aprendem é que o compromisso, e em particular o compromisso a  longo prazo,  é  a maior  armadilha  a ser  evitada  no esforço por  “relacionar-se”.  Um especialista informa aos leitores: “Ao se comprometerem, ainda que sem entusiasmo, lembrem-se de que possivelmente estarão fechando a porta a outras  possibilidades  românticas  talvez mais  satisfatórias  e completas”. Outro mostra-se ainda mais insensível: “A longo prazo, as promessas de compromisso são irrelevantes. Como outros investimentos, elas alternam períodos de alta e baixa”. E assim, se você deseja “relacionar-se”, mantenha distância; se quer usufruir do convívio, não assuma nem exija compromissos. Deixe todas as portas sempre abertas. Se lhes perguntassem, os habitantes de Leônia, uma das cidades invisíveis de Ítalo Calvino, diriam que sua paixão é “desfrutar coisas novas e diferentes”: De fato. A cada manhã eles “vestem roupas novas em folha, tiram latas fechadas do mais recente modelo de geladeira, ouvindo jingles recém-lançados na estação de rádio mais quente do momento”. Mas a cada manhã “as sobras da Leônia de ontem aguardam pelo caminhão de lixo” e cabe indagar  se a verdadeira paixão dos leonianos na verdade não seria “o prazer de expelir, descartar, limpar-se de uma impureza recorrente”. Caso contrário, por que os varredores de rua seriam “recebidos como anjos” mesmo que sua missão fosse “cercada de um silêncio respeitoso” (o que é compreensível: “ninguém quer voltar a pensar em coisas que já foram rejeitadas”)?  Pensemos... Será que os habitantes de nosso líquido mundo moderno não são exatamente como os de Leônia, preocupados com uma coisa e falando de outra? Eles garantem que seu desejo, paixão, objetivo ou sonho é “relacionar-se”,  Mas será que na verdade não estão preocupados principalmente em evitar  que suas relações acabem congeladas e coaguladas? Estão mesmo procurando relacionamentos duradouros, como dizem,  ou seu maior desejo é que eles sejam leves e frouxos,  de tal  modo que,  como as riquezas de Richard Baxter,  que “cairiam sobre os  ombros como um manto leve” possam “ser  postos de lado a qualquer  momento”?  Afinal,  que  tipo  de  conselho  eles  querem de  verdade:  como  estabelecer  um relacionamento ou — só por precaução — como rompê-lo sem dor e com a consciência limpa? Não há uma resposta fácil  a essa pergunta,  embora ela precise ser  respondida e vá continuar  sendo feita,  à medida que os habitantes do líquido mundo moderno seguirem sofrendo sob o peso esmagador da mais ambivalente entre as muitas tarefas com que se defrontam no dia-a-dia. Talvez a própria ideia de “relacionamento” contribua para essa confusão. Apesar da firmeza que caracteriza as tentativas dos infelizes caçadores de relacionamentos e seus especialistas, essa noção resiste a ser plena e verdadeiramente purgada de suas conotações perturbadoras e preocupantes. Permanece cheia de ameaças vagas e premonições sombrias; fala ao mesmo tempo dos prazeres do convívio e dos horrores da clausura. Talvez seja por isso que, em vez de relatar suas experiências e expectativas utilizando termos como “relacionar-se” e “relacionamentos” as pessoas falem cada vez mais (auxiliadas e conduzidas pelos doutos especialistas) em conexões,  ou “conectar-se” e “ser conectado”.  Em vez de parceiros, preferem falar  em “redes”.  Quais  são os  méritos  da  linguagem da “conectividade”  que estariam ausentes  da linguagem dos “relacionamentos”? Diferentemente de “relações”,  “parentescos”,  “parcerias” e noções similares — que ressaltam o engajamento mútuo ao mesmo tempo em que silenciosamente excluem ou omitem o seu oposto, a falta de compromisso —, uma “rede” serve de matriz tanto para conectar quanto para desconectar; não é possível imaginá-la sem as duas possibilidades. Na rede, elas são escolhas igualmente legítimas, gozam do mesmo status e têm importância  idêntica.  Não faz sentido perguntar  qual  dessas  atividades  complementares constitui “sua essência”! A palavra “rede” sugere momentos nos quais “se está em contato” intercalados por períodos de movimentação a esmo. Nela as conexões são estabelecidas e cortadas por escolha. A hipótese de um relacionamento “indesejável, mas impossível de romper” é o que torna “relacionar-se” a coisa mais traiçoeira que se possa imaginar. Mas uma “conexão indesejável” é um paradoxo. As conexões podem ser rompidas, e o são, muito antes que se comece a detestá-las. Elas são “relações virtuais”. Ao contrário dos relacionamentos antiquados (para não falar daqueles com “compromisso” muito menos dos compromissos de longo prazo), elas parecem feitas sob medida para o líquido cenário da vida moderna, em que se espera e se deseja que as “possibilidades românticas” (e não apenas românticas) surjam e desapareçam numa velocidade crescente e em volume cada vez maior, aniquilando-se mutuamente e tentando impor aos gritos a promessa de “ser a mais satisfatória e a mais completa”.  Diferentemente  dos  “relacionamentos  reais”  é  fácil  entrar  e  sair  dos  “relacionamentos virtuais”. Em comparação com a “coisa autêntica”, pesada, lenta e confusa, eles parecem inteligentes e limpos,  fáceis de usar, compreender  e manusear.  Entrevistado a respeito da crescente popularidade do namoro pela Internet,  em detrimento dos bares para solteiros e das seções especializadas dos jornais e revistas,  um jovem de 28 anos da Universidade de Bath apontou uma vantagem decisiva da relação eletrônica: “Sempre se pode apertar a tecla de deletar”. Como  que  obedecendo  à  lei  de  Gresham,  as  relações  virtuais  (rebatizadas  de  “conexões”) estabelecem o padrão que orienta todos os outros relacionamentos. Isso não traz felicidade aos homens e mulheres que se rendem a essa pressão; dificilmente se poderia imaginá-los mais felizes agora do que quando se envolviam nas relações pré-virtuais. Ganha-se de um lado, perde-se de outro. Como apontou Ralph Waldo Emerson,  quando se esquia sobre gelo fino,  a salvação está  na velocidade.  Quando se  é  traído pela  qualidade,  tende-se  a  buscar  a  desforra  na  quantidade.  Se  “os compromissos são irrelevantes” quando as relações deixam de ser honestas e parece improvável que se sustentem, as pessoas se inclinam a substituir as parcerias pelas redes. Feito isso, porém, estabelecer-se fica ainda mais difícil (e adiável) do que antes — pois agora não se tem mais a habilidade que faz, ou poderia fazer, a coisa funcionar. Estar em movimento, antes um privilégio e uma conquista, torna-se uma necessidade.  Manter-se em alta velocidade,  antes uma aventura estimulante,  vira uma tarefa cansativa. Mais  importante,  a  desagradável  incerteza  e  a  irritante  confusão,  supostamente  escorraçadas  pela velocidade,  recusam-se a sair  de cena.  A facilidade do desengajamento e do rompimento (a qualquer hora)  não reduzem os riscos,  apenas  os distribuem de modo diferente,  junto com as  ansiedades  que provocam. Este livro é dedicado aos riscos e ansiedades de se viver  junto, e separado, em nosso líquido mundo moderno.
[...] Os principais alvos do ataque do mercado são os seres humanos como produtores.  Numa terra totalmente  conquistada  e  colonizada,  somente  consumidores  humanos  poderiam obter  permissão  de residência. A difusa indústria familiar das condições de vida compartilhadas seria posta fora de operação e desmantelada.  As  formas  de vida,  e  as  parcerias  que as  sustentam,  só estariam disponíveis  como mercadorias.  O Estado obcecado com a ordem combateu (correndo riscos)  a anarquia,  aquela marca registrada da communitas,  em função da ameaça à rotina imposta pelo poder.  O mercado consumidor obcecado pelos lucros combate essa anarquia devido à turbulenta capacidade produtiva que ela apresenta, assim como ao potencial para a auto-suficiência que, ao que se suspeita, crescerá a partir dela. É porque a economia moral tem pouca necessidade do mercado que as forças deste se levantam contra ela. Nessa guerra apresenta-se uma estratégia de mão dupla.
[...] Numa piada irlandesa,  quando um motorista pergunta ao transeunte "como se vai daqui  para Dublin", este lhe responde: "Se eu quisesse ir para Dublin, não partiria daqui.” Com efeito,  pode-se  facilmente  imaginar  um mundo  mais  adequado  para  a  jornada  rumo  à "unidade universal da humanidade" kantiana do que aquele que por acaso habitamos hoje, ao fim da era da trindade território/nação/Estado. Mas não existe outro mundo, e assim não há outro lugar de onde se partir. No entanto não iniciar a jornada, ou não iniciá-la logo, não é — neste caso, sem dúvida — uma opção. A unidade da espécie humana postulada por Kant pode ser, como ele sugeria, compatível com a intenção  da  Natureza,  mas  certamente  não  parece  algo  "historicamente  determinado"  O continuado descontrole da rede já global  de dependência mútua e de "vulnerabilidade reciprocamente assegurada" decerto não aumenta a chance de se alcançar tal unidade.  Isso só significa,  contudo, que em nenhuma outra época a intensa busca por uma humanidade comum, assim como a prática que segue tal pressuposto, foi tão urgente e imperativa como agora. Na era  da globalização,  a causa e a política  da humanidade compartilhada enfrentam a mais decisiva de todas as fases que já atravessaram em sua longa história.


O AMOR LÍQUIDO – O livro O amor líquido: sobre a fragilidade dos laços humanos, do sociólogo polonês Zygmunt Bauman, traz temas como apaixonar-se e desapaixonar-se, dentro e fora da caixa de ferramentas da sociabilidade, sobre a dificuldade de amar o próximo e convívio destruído. Na primeira parte, aborda o apaixonar-se e desapaixonar-se a partir de assuntos que envolvem Charles Baudalaire, Walter Benjamin, a morte e o amor realizado de Ivan Klima, Heraclito, Malinowiski, Bacon, Platão, Erich Fromm, Eros, o Messias de Kafka, desejo e amor, Catherine Jarvie, Adrienne Burgess, relacionamentos como investimentos, o fracasso no relacionamento, impulsos antropofágicos, a relação de volso é de certa duração com as condições de entrar no relacionamento consciente e sóbrio e manter do jeito que é, o encantado/viciado público, Antígona, afinidade, ideologia da intimidade de Sennett, a comunidade imaginada de Benedict Anderson. Na segunda parte, dentro e fora da caixa de ferramentas da sociabilidade, trata do homo sexualis abandonado e destituído, Levi-Straus no encontro dos sexos, a origem da cultural, a scientia sexualis de Volkmar Sigusch, órfãos de Eros, destituído pelo futuro, a medicina compete com o sexo pela responsabilidade da reprodução, o filho como um objeto de consumo emocional, paternidade e o pacote de dores do autossacrifício e os temores de perigos inexplorados, Fromm e o sexo em si, a liquida racionalidade moderna, o consumo é caracterizado pelo uso e descarte, os líquidos ambientes modernos: a subdefinição, a incompletude e a ausência de finalidade da identidade sexual; a sublimação de Freud, a circularidade de Derrida, communitas em oferta, qualidade e quantidade, duração pela rapidez, diversão, o Produto Nacional Bruto (PNB), gastar mais dinheiro é crescer, Bakunin e os valores da ajuda mútua, a invasão e colonização da communitas. Na terceira parte, sobre a dificuldade de amar o próximo aborda sobre o amor ao próximo como a si mesmo e a razão do interesse próprio e a busca da felicidade, a exigência ética de Logstrup, o relacionamento puro de Anthony Giddens, o mundo de hoje parece estar conspirando contra a confiança, a imediação da presença e a imediação da ação, cidade e mudança social, mixofobia e mixofilia no campo de batalha urbano. Na quarta parte, convívio destruído, trata acerca do espectro de xenofobia, o lixo humano, exclusão da humanidade, Hannah Arendt, a nova escala planetária da produção e reciclagem dos problemas, guarnições de extraterritorialidade como aterros sanitários, a encruzilhada dos refugiados e as perspectivas sombrias.

REFERÊNCIA
BAUMAN, Zygmunt. O amor líquido: sobre a fragilidade dos laços humanos. Rio de Janeiro: Zahar, 2004.

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