[...] Pedimos
somente um pouco de ordem para nos proteger
do caos. Nada é mais doloroso,
mais angustiante do que um pensamento que escapa a si mesmo, idéias que fogem,
que desaparecem apenas esboçadas, já corroídas pelo esquecimento ou
precipitadas em outras, que também não dominamos. São variabilidades infinitas
cuja desaparição e aparição coincidem. São velocidades infinitas, que se
confundem com a imobilidade do nada incolor e silencioso que percorrem, sem natureza
nem pensamento. É o instante que não sabemos se é longo demais ou curto demais
para o tempo. Recebemos chicotadas que latem como artérias. Perdemos sem
cessar nossas idéias. E por isso que queremos tanto agar-rarmo-nos a
opiniões prontas. Pedimos somente que nossas idéias se encadeiem segundo um
mínimo de regras constantes, e a associação de idéias jamais teve outro
sentido: fornecer-nos regras protetoras, semelhança, contigüidade, causalidade, que nos permitem
colocar um pouco de ordem nas idéias, passar de uma a outra segundo uma ordem
do espaço e do tempo, impedindo nossa "fantasia" (o delírio, a
loucura) de percorrer o universo no instante, para engendrar nele cavalos
alados e dragões de fogo. Mas não haveria nem um pouco de ordem nas idéias, se
não houvesse também nas coisas ou estados de coisas, como um anti-caos
objetivo: "Se o cinábrio fosse ora vermelho, ora preto, ora leve, ora
pesado..., minha imaginação não encontraria a ocasião para receber, no
pensamento, o pesado cinábrio com a representação da cor vermelha." E,
enfim, para que haja acordo entre coisas e pensamento, é preciso que a sensação
se re-produza, como a garantia ou o testemunho de seu acordo, a sensação de
pesado cada vez que tomamos o cinábrio na mão, a de vermelho cada vez que o
vemos, com nossos órgãos do corpo, que não percebem o presente, sem lhe impor
uma conformidade com o passado. É tudo isso que pedimos para formar uma
opinião, como uma espécie de "guarda-sol" que nos protege do caos. Nossas
opiniões são feitas de tudo isso. Mas a arte, a ciência, a filosofia exigem
mais: traçam planos sobre o caos. Essas três disciplinas não são como as
religiões, que invocam dinastias de
deuses, ou a epifania de um deus único,
para pintar sobre o guarda-sol um firmamento, como as figuras de uma Urdoxa de onde
derivariam nossas opiniões. A filosofia, a ciência e a arte querem que
rasguemos o firmamento e que mergulhemos no caos. Só o venceremos a este preço.
Atravessei três vezes o Aqueronte como vencedor. O filósofo, o cientista, o
artista parecem retornar do país dos mortos. O que o filósofo traz do caos são
variações que permanecem infinitas,
mas tornadas inseparáveis
sobre superfícies ou em volumes
absolutos, que traçam um
plano de ima-nência
secante: não mais
são associações de
idéias distintas, mas
reencadeamentos, por zona
de indistinção, num conceito.
O cientista traz do
caos variáveis, tornadas independentes por desaceleração,
isto é, por eliminação de outras va-riabilidades quaisquer, suscetíveis de interferir,
de modo que as variáveis retidas entram em relações determináveis numa função:
não mais são liames de propriedades nas coisas, mas coordenadas finitas sobre
um plano secante de referência, que vai das probabilidades locais a uma
cosmologia global. O artista traz do caos variedades, que não constituem mais
uma reprodução do sensível no órgão, mas erigem um ser do sensível, um ser da
sensação, sobre um plano de composição,
anorgânica, capaz de
restituir o infinito. A luta com o caos, que Cézanne e Klee mostraram em ato na
pintura, no coração da pintura, se encontra de uma outra maneira na
ciência, na filosofia: trata-se sempre
de vencer o caos por um plano secante que o atravessa. O pintor passa por uma
catástrofe, ou por um incêndio, e deixa sobre a tela o traço dessa passagem,
como do salto que o conduz do caos à composição. As próprias equações
matemáticas não desfrutam de uma tranqüila certeza que seriacomo a sanção de
uma opinião científica dominante, mas saem de um abismo que faz que o
matemático"salte de pés juntos sobre os cálculos", que preveja que
não pode efetuá-los e não chega à verdade sem "sechocar de um lado e do
outro". E o pensamento filosófico não reúne seus conceitos na amizade, sem
serainda atravessado por uma fissura que
os reconduz ao ódio ou os dispersa no caos coexistente, onde épreciso retomá-los, pesquisá-los, dar
um salto. É como se se jogasse uma rede, mas o pescador arrisca-sesempre a ser
arrastado e de se encontrar em
pleno mar, quando acreditava chegar ao porto.
As trêsdisciplinas procedem por crises
ou abalos, de maneira diferente,
e é a sucessão que permite falar
de"progresso" em cada caso. Diríamos que a luta contra o caos
implica em afinidade com o inimigo, porque umaoutra luta se desenvolve e toma
mais importância, contra a opinião que, no entanto, pretendia nos proteger
dopróprio caos. Num texto violentamente
poético, Lawrence descreve o que a
poesia faz: os homens nãodeixam de
fabricar um guarda-sol que os abriga, por baixo do qual traçam um firmamento e
escrevem suasconvenções, suas opiniões; mas o poeta, o artista abre uma fenda
no guarda-sol, rasga até o firmamento,para fazer passar
um pouco do caos livre e tempestuoso e enquadrar numa luz brusca, uma visão queaparece através da fenda,
primavera de Wordsworth ou maçã de Cézanne,
silhueta de Macbeth ou de Ahab.
Então, segue a massa dos
imitadores, que remendam o guarda-sol,
com uma peça que parece vagamente com a visão; e a massa dos glosadores que preenchem
a fenda com opiniões: comunicação. Será preciso sempre outros artistas para
fazer outras fendas, operar as necessárias destruições, talvez cada vez
maiores, e restituir assim, a seus predecessores, a incomunicável novidade que
não mais se podia ver. Significa dizer que o artista se debate menos contra o
caos (que ele invoca em todos os seus votos, de uma certa maneira), que contra
os "clichês" da opinião. O pintor não pinta sobre uma tela virgem,
nem o escritor escreve sobre uma página branca, mas a página ou a tela estão já
de tal maneira cobertas de clichês preexistentes, preestabelecidos, que é
preciso de início apagar, limpar, laminar,
mesmo estraçalhar para fazer passar uma corrente de ar, saída do caos,
que nos traga a visão. Quando Fontana corta a tela colorida com um traço de
navalha, não é a cor que ele fende dessa maneira, pelo contrário, ele nos faz
ver o fundo de cor pura, através da fenda. A arte luta efetivamente com o caos,
mas para fazer surgir nela uma visão que o ilumina por um instante, uma
Sensação. Mesmo as casas...: é do caos que saem as casas
embriagadas de Soutine, chocando-se
de um lado e do outro,
impedindo-se reciprocamente de nele recair; e a casa de Monet surge como
uma fenda, através da qual o caos se torna a visão das rosas. Mesmo o encarnado
mais delicado se abre para o caos, como a carne sobre o esfolado. Uma obra de
caos não é certamente melhor do que uma obra de opinião, a arte não é mais
feita de caos do que de opinião; mas, se ela se bate contra o caos, é para
emprestar dele as armas que volta contra a opinião, para melhor vencê-la com
armas provadas. É mesmo porque o quadro está desde início recoberto por
clichês, que o pintor deve enfrentar o caos e apressar as destruições, para
produzir uma sensação que desafia qualquer opinião, qualquer clichê (por quanto
tempo?). A arte não é o caos, mas uma composição do caos, que dá a visão ou
sensação, de modo que constitui um caosmos, como diz Joyce, um caos composto —
não previsto nem preconcebido. A arte transforma a variabilidade caótica em
variedade caóide, por exemplo o flamejamento cinza negro e verde de El Greco; o
flamejamento de ouro de Turner ou o flamejamento vermelho de Staél. A arte luta
com o caos,mas para torná-lo sensível, mesmo através do personagem mais
encantador, a paisagem mais encantada(Watteau). Um movimento semelhante sinuoso
e reptiliano, anima talvez a ciência. Uma luta contra o caos
parecepertencer-lhe por essência,
quando faz entrar
a variabilidade desace-lerada
sob constantes ou
limites,quando a reconduz dessa maneira a centros de equilíbrio, quando
a submete a uma seleção que só retém umpequeno número de variáveis
independentes, nos eixos
de coordenadas, quando
instaura, entre essasvariáveis, relações cujo estado futuro
pode ser determinado a partir do presente (cálculo determinista), ou
aocontrário quando faz intervir tantas variáveis ao mesmo tempo, que o estado
de coisas é apenas estatístico(cálculo de probabilidades). Pode-se falar, nesse
sentido, de uma opinião propriamente científica, conquistadasobre o caos, como de uma comunicação definida, ora por informações
iniciais, ora por informações degrande
escala e que vai, no mais das vezes, do elementar ao composto, seja do presente
ao futuro, seja domolecular ao molar. Mas, ainda aí a ciência não pode
impedir-se de experimentar uma profunda atração pelocaos que combate. Se a
desaceleração é a fina borda que nos separa
do caos oceânico,
a ciência se
aproxima tanto quanto
ela pode das
vagas mais próximas, estabelecendo relações que se conservam com a
aparição e a desaparição das variáveis (cálculo diferencial); a diferença se
faz cada vez menor entre o estado
caótico, em que a aparição e a
desaparição de uma variabilidade se confundem, e o estado semi-caótico, que
apresenta uma relação como limite das variáveis que aparecem ou
desaparecem. Como diz Michel
Serres a propósito
de Leibniz, "haveria
dois infraconscientes: o
mais profundo seria
estruturado como um
conjunto qualquer, pura
multiplicidade ou possibilidade em geral,
mistura aleatória de
signos; o menos
profundo seria recoberto
de esquemas combinatórios desta
multiplicidade...". Poderíamos conceber uma série de coordenadas ou de
espaços de fases como uma sucessão de crivos, dos quais o precedente sempre
seria relativamente um estado caótico e o seguinte um estado caóide, de modo
que passaríamos por limiares caóticos, ao invés de ir do elementar ao composto.
A opinião nos apresenta uma ciência que sonharia com a unidade, com unificar
suas leis e, hoje ainda, procuraria uma comunidade das quatro forças. Mais
obstinado porém, o sonho de captar um pedaço de caos, mesmo se as mais diversas
forças nele se agitam. A ciência daria toda a unidade racional à qual aspira,
por um pedacinho de caos que pudesse explorar. A arte capta um pedaço de caos
numa moldura, para formar um caos composto que se torna sensível, ou do
qual retira uma sensação caóide enquanto
variedade; mas a ciência o apreende num
sistema de coordenadas, e forma um caos referido que se torna Natureza, e com o
qual produz uma função aleatória e variáveis caóides. É desse modo que um dos
aspectos mais importantes da física matemática moderna aparece em
transições na direção do caos, sob a ação de atratores "estranhos" ou caóticos:
duas trajetórias vizinhas, num sistema determinado de coordenadas, não
permanecem vizinhas, e divergem de maneira exponencial antes de se aproximarem por operações de estiramento e de redobramento
que se repetem, e recortam o caos. Se os atratores de equilíbrio (pontos fixos,
ciclos limites, toros) exprimem bem a luta da ciência com o caos, os atratores
estranhos desmascaram sua profunda atração pelo caos, assim como a constituição
de um caosmos interior à ciência moderna
(tudo, coisas que se revelavam, de uma maneira
ou de outra, em períodos precedentes, notadamente na fascinação pelas
turbulências). Encontramos pois uma conclusão análoga àquela a que nos conduzia
a arte: a luta com o caos só é o instrumento de uma luta mais profunda contra a
opinião, pois é da opinião que vem a desgraça dos homens. A ciência volta-se contra
a opinião, que lhe empresta um gosto religioso de unidade ou de unificação. Mas
assim ela se volta, em si mesma, contra
a opinião propriamente científica,
enquanto Urdoxa que consiste, ora
na previsão determinista (o Deus de Laplace), ora na avaliação probabilística
(o demônio de Maxwell): desli-gando-se das informações iniciais e das
informações de grande escala, a ciência substitui a comunicação, pelas
condições de criatividade, definidas pelos efeitos singulares de flutuações
mínimas. O que é criação são as variedades estéticas ou as variáveis
científicas, que surgem sobre um plano capaz de recortar a variabilidade caótica.
Quanto às pseudo-ciências, que pretendem considerar os fenômenos de opinião, os
cérebros artificiais de que se servem tomam como modelos processos
probabilísticos, atratores estáveis, toda uma lógica da mesmo tempo, a luta do
pensamento contra a opinião e a degenerescência do pensamento na própria
opinião (uma das vias de evolução dos computadores vai no sentido de uma aceitação de um sistema
caótico ou caotizante). É o que confirma o terceiro
caso, não mais a variedade sensível nem a variável funcional,
mas a variação conceituai tal
como aparece na filosofia.
A filosofia também luta com o
caos, como abismo indiferenciado
ou oceano da disseme-lhança. Não concluiremos disso que a filosofia se coloca
do lado da opinião, nem que a
opinião passa a
ter lugar na
filosofia. Um conceito não é
um conjunto de ideias associadas,
como uma opinião. Nem tampouco uma ordem de razões, uma série de razões
ordenadas, que poderiam, a rigor, constituir uma espécie de Urdoxa racionalizada.
Para atingir o conceito, não basta mesmo que os fenômenos se submetam a
princípios análogos àqueles que associam as idéias, ou as coisas, aos princípios
que ordenam as razões. Como diz Michaux, o que basta para as "idéias
correntes" não basta para as "idéias vitais" — as que se deve
criar. As idéias só são associáveis como imagens, e ordenáveis como abstrações;
para atingir o conceito, é preciso que ultrapassemos umas e outras, e
que atinjamos o mais rápido possível objetos mentais determináveis como seres
reais. É já o que mostravam Espinosa ou Fichte: devemos nos servir de ficções e
de abstrações, mas somente na medida necessária para aceder a um plano, onde
caminharíamos de ser real em ser real e procederíamos por construção de
conceitos. Vimos como este resultado podia ser obtido na medida em que
variações se tornavam inseparáveis, segundo zonas de vizinhança ou de indiscernibilidade: elas
deixam então de ser associáveis,
segundo os caprichos
da imaginação, ou discerníveis e ordenáveis segundo as
exigências da razão, para formar verdadeiros blocos conceituais. Um conceito é um
conjunto de variações
inseparáveis, que se
produz ou se
constrói sobre um plano
deimanência, na medida em que
este recorta a variabilida-de caótica e lhe dá consistência (realidade). Umconceito
é, pois, um estado
caóide por excelência;
remete a um caos
tornado consistente, tornadoPensamento, caosmos mental. E que
seria pensar se não se comparasse sem cessar com o caos? A Razãosó nos oferece
seu verdadeiro rosto quando "ruge na sua cratera". Mesmo o cogito só
é uma opinião, nomáximo uma Urdoxa,
enquanto não se extrai dele as variações inseparáveis, que dele fazem um
conceito;enquanto se renuncia a encontrar nele um guarda-sol ou um abrigo;
quanto se deixa de supor uma imanênciaque se faria por ele mesmo — ao contrário, é preciso colocá-lo sobre um plano de
imanência ao qualpertence e que o conduz ao pleno mar. Numa palavra, o caos tem
três filhas segundo o plano que o recorta: são as Caóides, a arte, a ciência e
a filosofia, como formas do pensamento ou da criação. Chamam-se decaóides as
realidades produzidas em planos que recortam o caos. A junção (não a unidade)
dos três planos é o cérebro. Certamente, quando o cérebro é consideradocomo uma
função determinada, aparece
ao mesmo tempo como um conjunto complexo
de conexõeshorizontais e de integrações verticais,
reagindo umas sobre as
outras, como testemunham os "mapas"cerebrais. Então a questão é
dupla: as conexões são preestabelecidas, guiadas como por trilhos, ou fazem-see
desfazem-se em campos de forças? E os processos de integração são centros
hierárquicos localizados, ouantes formas (Gestalten), que atingem suas condições de
estabilidade, num campo do qual depende aposição do próprio centro? A
importância da Gestalttheorie, deste ponto de vista, concerne tanto à teoria do
cérebro, quanto à concepção da percepção, já que ela se opõe diretamente ao
estatuto do córtex, tal como aparecia do ponto de vista dos reflexos
condicionados. Mas, quaisquer que sejam os pontos de vista considerados, não se
tem dificuldade em mostrar que caminhos, inteiramente prontos ou em vias de se
fazer, centros, mecânicos ou dinâmicos, encontram dificuldades semelhantes. Caminhos inteiramente prontos, que se segue
aos poucos, implicam num traçado prévio; mas trajetos, que se constituem num
campo de forças, procedem por resoluções de tensão, agindo também
gradativamente (por exemplo, a tensão de reaproximação entre a fóvea e o ponto
luminoso projetado sobre a retina, tendo esta uma estrutura análoga a uma área
cortical): os dois esquemas supõem um "plano", não um fim ou um
programa, mas um sobrevoo do campo inteiro. É isso que a Gestalttheorie não
explica, do mesmo modo que o mecani-cismo não explica a pré-montagem. Não é de
se surpreender que o cérebro, tratado como objeto constituído da ciência, só
possa ser um órgão de formação e de comunicação da opinião: é que as conexões
graduais e as integrações centradas permanecem sob o modelo estreito da
recognição (gnosias e praxias, "é um cubo", "é um
lápis"...), e que a biologia do cérebro se alinha aqui com os mesmos postulados da lógica mais
obstinada. As opiniões são formas
pregnantes, como as bolhas de sabão segundo a Gestalt, levando em conta os
meios, os interesses, as crenças e os obstáculos. Parece então difícil tratar a filosofia, a arte e mesmo a ciência
como "objetos mentais", simples conjuntos de neurônios no cérebro
objetivado, já que o modelo derrisório da recognição os encerra na doxa. Se os
objetos mentais da filosofia, da arte e da ciência (isto é, as idéias vitais)
tivessem um lugar, seria no mais profundo das fen-das sinápticas, nos hiatos,
nos intervalos e nos entre-tempos de um cérebro inobjetivável, onde penetrar,
para procurá-los, seria criar. Seria um pouco como no ajuste de uma tela de
televisão, cujas intensidades fariam surgir o que escapa do poder de definição
objetivo. Significa dizer que o pensamento, mesmo sob a forma que toma
ativamente na ciência, não depende de um
cérebro feito de conexões e de integrações orgânicas: segundo a
fenomenologia, dependeria de relações do
homem com o mundo — com as quais o cérebro concorda necessariamente porque
delas deriva, como as excitações derivam
do mundo e das reações do homem, inclusive em suas incertezas e suas falências.
"O homem pensa e não o cérebro"; mas esta reação da fenomenologia,
que ultrapassa o cérebro na direção de um Ser no mundo, através de uma dupla
crítica do mecanicismo e do dinamismo,
não nos faz absolutamente sair
ainda da esfera das opiniões, conduz-nos somente a uma Urdoxa, afirmada
como opinião originária ou sentido dos sentidos. A viragem não estaria em outra
parte, lá onde o cérebro é "sujeito", se torna sujeito? É o cérebro
que pensa e não o homem, o homem sendo apenas uma cristalização cerebral.
Pode-se falar do cérebro como Cézanne da paisagem: o homem ausente, mas inteiro
no cérebro... A filosofia, a arte, a ciência não são os objetos mentais de um
cérebro objetivado, mas os três aspectos
sob os quais o cérebro se torna sujeito, Pensamento-cérebro, os três planos, as
jangadas com as quais ele mergulha no caos e o enfrenta. Quais são os caráteres
deste cérebro, que não mais se define pelas conexões e integrações secundárias?
Não é um cérebro por trás do cérebro mas, a princípio, um estado de sobrevôo
sem distância, ao rés do chão, autosobrevôo do qual não escapa nenhum abismo,nenhuma
dobra nem hiato. É uma "forma verdadeira", primária como a definia Ruyer:
não uma Gestalt, nem uma forma percebida, mas uma forma em si, que não remete a
nenhum ponto de vista exterior, como a retina ou a área estria-da
do córtex não
remete a uma outra,
uma forma consistente absoluta
que se sobrevoa independentemente de qualquer
dimensão suplementar, que não apela, pois, a nenhuma transcendência, que só tem
um único lado, qualquer que seja o número de suas dimensões, que permanece
co-presente a todas as suas determinações, sem proximidade ou distanciamento,
que as percorre numa velocidade infinita, sem velocidade-limite, e que faz
delas variações inseparáveis, às quais
confere uma equipotencialidade sem confusão. Vimos que tal era o estatuto do
conceito como acontecimento puro ou realidade do virtual. E, sem dúvida, os
conceitos não se reduzem a um único e mesmo cérebro, já que é cada um deles que
constitui um "domínio de sobrevôo", e as passagens de um conceito a
um outro permanecem irredutíveis, enquanto um novo conceito
não tornar necessário,
por sua vez,
sua co-presença ou a equipotencialidade das determinações. Não
diremos também que todo conceito é um cérebro.
Mas o cérebro, sob este primeiro aspecto
da forma absoluta, aparece bem como a faculdade dos conceitos, isto é, como a
faculdade da sua criação, ao mesmo tempo
que estende o plano de imanência, sobre
o qual os conceitos se alocam, se deslocam,
mudam de ordem e de relações, se renovam e não param de criar-se. O cérebro é o espírito mesmo. É ao mesmo
tempo que o cérebro se torna sujeito, ou antes "superjecto", segundo
o termo de Whitehead, que o conceito se torna o objeto como criado, o acontecimento
ou a criação mesma, e a filosofia, o plano de imanência que carrega os conceitos
e que traça o cérebro. Assim,
os movimentos cerebrais engendram personagens conceituais. É
o cérebro que diz Eu, mas Eu
é um outro. Não é o mesmo cérebro que o das
conexões e integrações segundas,
embora não haja transcendência. E este Eu não é apenas o "eu concebo"
do cérebro como filosofia, é também o "eu sinto" do cérebro como
arte. A sensação não é menos cérebro que o conceito. Se consideramos as
conexões nervosas excitação-reação e as integrações cerebrais percepção-ação,
não nos perguntaremos em que momento do caminho, nem em que nível, aparece a
sensação, pois ela é suposta e se mantém na retaguarda. A retaguarda não é o
contrário do sobrevôo, mas um correlato. A sensação é a excitação mesma, não
enquanto se prolonga gradativamente e passa à reação, mas enquanto se conserva ou
conserva suas vibrações. A sensação contrai as vibrações do excitante sobre uma
superfície nervosa ou num volume cerebral: a precedente não desapareceu ainda
quando a seguinte aparece. É sua maneira de responder ao caos. A sensação
vibra, ela mesma, porque contrai vibrações. Conserva-se a si mesma, porque conserva
vibrações: ela é Monumento. Ela ressoa, porque faz res-. soar seus harmônicos.
A sensação é a vibração contraída, tornada qualidade, variedade. É por isso que
o cérebro-su-jeito aqui é dito alma ou força, já que só a alma conserva
contraindo o que a matéria dissipa, ou
irradia, faz avançar, reflete, refracta ou converte. Assim procuramos em vão
a sensação enquanto nos limitamos às reações e às excitações que elas prolongam,
às ações e às percepções que elas refletem: é que a alma (ou antes a força),
como dizia Leibniz, nada faz ou não age, mas é apenas presente, conserva; a
contração não é uma ação, mas uma paixão pura, uma contemplação que conserva o
precedente no seguinte. A sensação está pois sobre um outro plano diferente
daquele dos mecanismos, dos dinamismos
e das finalidades: é um plano de composição, em que a sensação se forma contraindo o que a
compõe, e compondo-se com outras sensações que ela contrai por sua vez. A
sensação é contemplação pura, pois é pela contemplação que se contrai,
contemplando-se a si mesma à medida que se contempla os elementos de que se
procede. Contemplar é criar, mistério da
criação passiva, sensação. A sensação preenche o plano de composição, e preenche a si mesma preenchendo-se com
aquilo que ela contempla: ela é enjoyment, e self-enjoyntent. É um sujeito, ou
antes um injecto. Plotino podia definir todas as coisas como contemplações, não
apenas os homens e os animais, mas as plantas, a terra e as rochas. Não são
Idéias que contemplamos pelo conceito, mas os elementos da matéria, por
sensação. A planta contempla contraindo os elementos dos quais ela procede, a
luz, o carbono e os sais, e se preenche a si mesma com cores e odores que
qualificam sempre sua variedade, sua composição: é sensação em si. Como se as flores
sentissem a si mesmas sentindo o que as compõe, tentativas de visão ou de
olfato primeiros, antes de serem percebidas ou mesmo sentidas por um agente
nervoso e cerebrado. [...].
O QUE É A FILOSOFIA – O livro O que é a filosofia,
dos filósofos Gilles Deleuze e Félix Guattari, trata sobre o que é um conceito,
o plano de imanência, os personagens conceituais, a geo-filosofia, ciência,
lógica, arte, functivos e conceitos, prospectos e conceitos, percepto, afecto,
do caos ao cérebro, entre outros assuntos.
REFERÊNCIA
DELEUZE,
Gilles; GUATTARI, Félix. O que é a filosofia? Rio de Janeiro: 34, 1995.
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