sábado, 17 de janeiro de 2015

O ANTI-ÉDIPO, DE DELEUZE & GUATTARI


[...] na formação de soberania capitalista (corpo pleno do capital-dinheiro como socius) a grande axiomática social tem substituído os códigos territoriais e as sobrecodificações despóticas que caracterizam as formações precedentes; assim se formou um conjunto gregário, molar, cujo poder de sujeição não tem igual. Vimos sobre que bases funciona esse conjunto: todo um campo de imanência que se reproduz numa escala cada vez maior, que não para de multiplicar seus axiomas à medida das suas necessidades, que se enche de imagens e de imagens de imagens, através das quais o desejo é determinado a desejar a sua própria repressão (imperialismo) — uma descodificação e uma desterritorialização sem precedentes, que instauram uma conjugação como sistema de relações diferenciais entre os fluxos descodificados e desterritorializados, de tal maneira que a inscrição e a repressão sociais já não têm necessidade de incidir diretamente sobre os corpos e as pessoas, mas, ao contrário, os precedem (axiomática, regulação e aplicação) — uma mais-valia determinada como mais-valia de fluxo, cuja extorsão não ocorre por simples diferença aritmética entre duas quantidades homogêneas e de mesmo código, mas precisamente por relações diferenciais entre grandezas heterogêneas que não são de mesma potência: fluxo de capital e fluxo de trabalho como mais-valia humana na essência industrial do capitalismo, fluxo de financiamento e fluxo de pagamento ou de rendas na inscrição monetária do capitalismo, fluxo de mercado e fluxo de inovação como mais-valia maquínica no funcionamento comercial e bancário do capitalismo (mais-valia como primeiro aspecto da imanência) — uma classe dominante tanto mais impiedosa quanto menos põe a máquina a seu serviço, pois é a serva da máquina capitalista: classe única, neste sentido, que se contenta em tirar rendimentos que, por enormes que sejam, têm apenas uma diferença aritmética em relação às rendas-salários dos trabalhadores, ao passo que ela funciona mais profundamente como criadora, reguladora e guardiã do grande fluxo não apropriado, não possuído, incomensurável relativamente aos salários e aos lucros, que marca a cada instante os limites interiores do capitalismo, seu deslocamento perpétuo e  sua reprodução numa escala ampliada (jogo dos limites interiores como segundo aspecto do campo de imanência capitalista, definido pela relação circular “grande fluxo de financiamento-refluxo das rendas salariais-afluxo do lucro bruto”) — e difusão da antiprodução na produção, como realização ou absorção da mais-valia, de tal maneira que o aparelho militar, burocrático e policial se acha fundado na própria economia, que produz diretamente investimentos libidinais da repressão de desejo (antiprodução como terceiro aspecto da imanência, exprimindo a dupla natureza do capitalismo, produzir por produzir, mas nas condições do capital). Não há um só desses aspectos, nem a mínima operação, nem o menor mecanismo industrial ou financeiro que deixe de manifestar a demência da máquina capitalista e o caráter patológico de sua racionalidade (não falsa racionalidade, mas verdadeira racionalidade desse patológico, dessa demência, “porque a máquina funciona, estejam certos disso”). Ela não corre o risco de devir louca, pois já é louca de uma ponta a outra desde o início,e é disto que sai sua racionalidade. O humor negro de Marx, a fonte do Capital, é sua fascinação por uma tal máquina: como isso pôde montar-se,  sobre que fundo de descodificação e de desterritorialização, como isso funciona, cada vez mais descodificada, cada vez mais desterritorializada, como isso funciona tão solidamente através da axiomática, através da conjugação de fluxos, como isso produz a terrível classe única dos homens cinzentos que mantêm a máquina, como isso não corre o risco de morrer sozinho, mas, antes, o que faz é nos levar a morrer, suscitando até o fim investimentos de desejo que nem sequer passam por uma ideologia enganadora e subjetiva e que nos fazem gritar até o fim Viva o capital na sua realidade, na sua dissimulação objetiva! Nunca houve, a não ser na ideologia, capitalismo humano, liberal, paternal etc. O capital define-se por uma crueldade sem igualquando comparada com o sistema primitivo da crueldade, define-se por um terror sem igual quando comparado com regime despótico do terror. Os aumentos de salário, a melhoria do nível de vida são realidades, mas realidades que decorrem de tal ou qual axioma suplementar que o capitalismo é sempre capaz de acrescentar à sua axiomática em função de uma ampliação dos seus limites (façamos o New Deal, defendamos e reconheçamos sindicatos mais fortes, promovamos a participação, a classe única, venhamos a dar umpasso em direção à Rússia que faz o mesmo em nossa direção etc.). Mas, na realidade ampliada que condicionaessas ilhotas, a exploração não para de endurecer, a falta é arranjada da maneira mais hábil, as soluções finais do tipo “problema judeu” são preparadas muito minuciosamente, o terceiro Mundo é organizado como parte integrante do capitalismo. A reprodução dos limites interiores do capitalismo numa escala cada vez mais ampliada tem várias consequências: permitir no centro os aumentos e melhorias de nível, deslocar do centro para a periferia as formas mais duras de exploração, mas também multiplicar no próprio centro os enclaves de sobre-exploração, suportar facilmente as formações ditas socialistas (não é o socialismo à maneira dos kibutz que incomoda o Estado sionista e nem é o socialismo russo que incomoda o capitalismo mundial). Não é or metáfora que se constata isso: as fábricas são prisões, elas não se assemelham a prisões, elas o são. tudo está demente no sistema: é que a máquina capitalista se nutre de fluxos descodificados e desterritorializados; ela os descodifica e os desterritorializa ainda mais, mas fazendo-os passar para  um aparelho axiomático que os conjuga e que, nos pontos de conjugações, produz pseudocódigos e reterritorializações artificiais. [...].


O ANTI-ÉDIPO – O livro O Anti-Édipo: capitalismo e esquizofrenia, dos filósofos Gilles Deleuze e Félix Guattari, trata sobre as máquinas desejantes, a produção desejante, o orpo sem órgãos, o sujeito e o gozo, psiquiatria materialista, as máquinas, o todo e as partes, psicanálise e familismo: a santa família, o imperialismo de Édipo, três textos de Freud, a síntese conectiva de produção, a síntese disjuntiva de registro, a síntese conjuntiva de consumo, recapitulação das três sínteses, repressão e recalcamento, neurose e psicose, o processo, selvagens, bárbaros, civilizados, socius inscritor, a máquina territorial primitiva, problema de Édipo, psicanálise e etnologia, a representação territorial, a máquina despótica bárbara, a representação bárbara ou imperial, o Urstaat, a máquina capitalista civilizada, a representação capitalista; introdução à esquizoanálise, o campo social, o inconsciente molecular, psicanálise e capitalismo, primeira tarefa positiva da esquizoanálise, segunda tarefa positiva da esquizoanálise e balanço-programa para máquinas desejantes.

REFERÊNCIA
DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. O Anti-Édipo: capitalismo e esquizofrenia. São Paulo: 34, 2010.

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