[...] A civilização humana, expressão pela qual quero
significar tudo aquilo em que a vida humana se elevou acima de sua condição
animal e difere da vida dos animais - e desprezo ter que distinguir entre
cultura e civilização -, apresenta, como sabemos, dois aspectos ao observador.
Por um lado, inclui todo o conhecimento e capacidade que o homem adquiriu com o
fim de controlar as forças da natureza e extrair a riqueza desta para a
satisfação das necessidades humanas; por outro, inclui todos os regulamentos
necessários para ajustar as relações dos homens uns com os outros e,
especialmente, a distribuição da riqueza disponível. As duas tendências da
civilização não são independentes uma da outra; em primeiro lugar, porque as
relações mútuas dos homens são profundamente influenciadas pela quantidade de
satisfação instintual que a riqueza existente torna possível; em segundo,
porque, individualmente, um homem pode, ele próprio, vir a funcionar como
riqueza em relação a outro homem, na medida em que a outra pessoa faz uso de
sua capacidade de trabalho ou o escolha como objeto sexual; em terceiro,
ademais, porque todo indivíduo é virtualmente inimigo da civilização, embora se
suponha que esta constitui um objeto de interesse humano universal. É digno de
nota que, por pouco que os homens sejam capazes de existir isoladamente,
sintam, não obstante, como um pesado fardo os sacrifícios que a civilização
deles espera, a fim de tornar possível a vida comunitária. A civilização,
portanto, tem de ser defendida contra o indivíduo, e seus regulamentos,
instituições e ordens dirigem-se a essa tarefa. Visam não apenas a efetuar uma
certa distribuição da riqueza, mas também a manter essa distribuição; na
verdade, têm de proteger contra os impulsos hostis dos homens tudo o que
contribui para a conquista da natureza e a produção de riqueza. As criações
humanas são facilmente destruídas, e a ciência e a tecnologia, que as
construíram, também podem ser utilizadas para sua aniquilação. Fica-se assim
com a impressão de que a civilização é algo que foi imposto a uma maioria
resistente por uma minoria que compreendeu como obter a posse dos meios de
poder e coerção.
[...] Assim, a
religião seria a neurose obsessiva universal da humanidade; tal como a neurose
obsessiva das crianças, ela surgiu do complexo de Édipo, do relacionamento com
o pai. A ser correta essa conceituação, o afastamento da religião está fadado a
ocorrer com a fatal inevitabilidade de um processo de crescimento, e nos
encontramos exatamente nessa junção, no meio dessa fase de desenvolvimento.
Nosso comportamento, portanto, deveria modelar-se no de um professor sensato
que não se opõe a um novo desenvolvimento iminente, mas que procura
facilitar-lhe o caminho e mitigar a violência de sua irrupção. Decerto nossa
analogia não esgota a natureza essencial da religião. Se, por um lado, a
religião traz consigo restrições obsessivas, exatamente como, num indivíduo, faz
a neurose obsessiva, por outro, ela abrange um sistema de ilusões plenas de
desejo juntamente com um repúdio da realidade, tal como não encontramos, em
forma isolada, em parte alguma senão na amência, num estado de confusão
alucinatória beatífica. Mas tudo isso não passa de analogias, com a ajuda das
quais nos esforçamos por compreender um fenômeno social; a patologia do
indivíduo não nos provê de um correspondente plenamente válido.
[...] É possível que a educação libertada do ônus das
doutrinas religiosas não cause grande mudança na natureza psicológica do homem.
[...] Acreditamos
ser possível ao trabalho científico conseguir um certo conhecimento da
realidade do mundo, conhecimento através do qual podemos aumentar nosso poder e
de acordo com o qual podemos organizar nossa vida. Se essa crença for uma
ilusão, então nos encontraremos na mesma posição que você. Mas a ciência,
através de seus numerosos e importantes sucessos, já nos deu provas de não ser
uma ilusão. Ela conta com muitos inimigos manifestos, e muitos outros secretos,
entre aqueles que não podem perdoá-la por ter enfraquecido a fé religiosa e por
ameaçar derrubá-la. É censurada pela pequenez do que nos ensinou e pelo campo
incomparavelmente maior que deixou na obscuridade. Nisso, porém, as pessoas se esquecem
de quão jovem ela é, quão difíceis foram seus primórdios e quão
infinitesimalmente pequeno foi o período de tempo que decorreu desde que o
intelecto humano ficou suficientemente forte para as tarefas que ela
estabelece. Não nos achamos todos nós em falta, ao basear nossos julgamentos em
períodos de tempo que são curtos demais? Deveríamos tomar os geólogos como
modelo. As pessoas queixam-se da infidedignidade da ciência, do modo como ela
anuncia como lei hoje o que a geração seguinte identifica como erro e substitui
por uma nova lei cuja validade aceita não perdura por mais tempo. Mas isso é
injusto e, em parte, inverídico. As transformações da opinião científica são
desenvolvimentos, progressos, e não revoluções. Uma lei que a princípio foi
tida por universalmente válida, mostra ser um caso especial de uma uniformidade
mais abrangente ou é limitada por outra lei, só descoberta mais tarde; uma
aproximação grosseira à verdade é substituída por outra mais cuidadosamente
adaptada, a qual, por sua vez, fica à espera de novos aperfeiçoamentos. Existem
diversos campos em que ainda não superamos uma fase de pesquisa na qual fazemos
experiências com hipóteses que em breve têm de ser rejeitadas como inadequadas;
em outros campos, porém, já possuímos um cerne de conhecimento seguro e quase
inalterável. Finalmente, tentou-se desacreditar o esforço científico de maneira
radical, com o fundamento de que, achando-se ele ligado às condições de sua
própria organização, não poderia produzir nada mais senão resultados subjetivos,
ao passo que a natureza real das coisas a nós externas permanece inacessível.
Mas isso significa desprezar diversos fatores de importância decisiva para a
compreensão do trabalho científico. Em primeiro lugar, nossa organização - isto
é, nosso aparelho psíquico - desenvolveu-se precisamente no esforço de explorar
o mundo externo, e, portanto, teria de ter concebido em sua estrutura um certo
grau de utilitarismo; em segundo lugar, ela própria é parte constituinte do
mundo que nos dispusemos a investigar e admite prontamente tal investigação; em
terceiro, a tarefa da ciência ficará plenamente abrangida se a limitarmos a
demonstrar como o mundo nos deve aparecer em consequência do caráter específico
de nossa organização; em quarto, as descobertas supremas da ciência,
precisamente por causa do modo pelo qual foram alcançadas, são determinadas não
apenas por nossa organização, mas pelas coisas que influenciaram essa
organização; finalmente, o problema da natureza do mundo sem levar em
consideração nosso aparelho psíquico perceptivo não passa de uma abstração
vazia, despida de interesse prático. Não, nossa ciência não é uma ilusão.
Ilusão seria imaginar que aquilo que a ciência não nos pode dar, podemos
conseguir em outro lugar.
O FUTURO DE UMA ILUSÃO – A obra
O futuro de uma ilusão, de Sigmund
Freud, trata sobre a civilização humana, instinto, frustração, renúncias
instintuais, privação, opressão, hostilidades, os ideais, a cultura, a
satisfação narcísica e o ideal cultural, a arte e as satisfações substitutivas,
educação, a humanização da natureza, o desamparo humano, o destino, os vales da
civilização as ideias religiosas, o totemismo, a significação psicologia dos
ideais religiosos, os ensinamentos da religião, as ilusões derivam do desejo
humano, as doutrinas religiosas, o espírito científico, as leias e as
convenções humanas, o pai primevo, entre outros assuntos. No mesmo volume
encontram-se ainda O mal-estar da civilização (veja aqui), fetichismo, o humor,
uma experiência religiosa, Dostoievski e o parricídio, alguns sonhos de
Descartes, o prêmio Goethe, relação dos trabalhos de Freud que tratam da arte,
literatura e teoria da estética, tipos libidinais, sexualidade humana e breves
escritos.
REFERÊNCIA
FREUD, Sigmund. O futuro de uma ilusão. Rio
de Janeiro: Imago, 1996.
Veja
mais aqui.