quarta-feira, 7 de janeiro de 2015

O CASO SCHREBER, DE SIGMUND FREUD


[...] a transferência, no tratamento analítico, invariavelmente nos aparece, desde o início, como a arma mais forte da resistência, e podemos concluir que a intensidade e persistência da transferência constituem efeito e expressão da resistência. Ocupamo-nos do mecanismo da transferência, é verdade, quando o remontamos ao estado de prontidão da libido, que conservou imagos infantis, mas o papel que a transferência desempenha no tratamento só pode ser explicado se entrarmos na consideração de suas relações com as resistências.
[...] desejávamos sugerir que não se deve deixar desencorajar pela natureza amiúde repulsivamente suja e indecente deste material popular de nele buscar confirmação valiosa das opiniões psicanalíticas. Assim, nesta ocasião, pudemos estabelecer o fato de que o folclore interpreta os símbolos oníricos da mesma maneira que a psicanálise, e que, ao contrário da altamente proclamada opinião popular, deriva um grupo de sonhos de necessidades e desejos que se tornaram imediatos. Por outro lado, gostaríamos de expressar a opinião de que é cometer uma injustiça com o povo comum supor que emprega esta forma de entretenimento simplesmente para satisfazer os desejos mais grosseiros. Parece antes que por trás destas feias fachadas se acham ocultas reações mentais a impressões da vida que devem ser tomadas a sério, que até mesmo entristecem - reações a que o povo comum está pronto a entregar-se, desde que se façam acompanhar por uma produção de prazer grosseiro.
[...] Na psicologia que se baseia na psicanálise, acostumamo-nos a tomar como ponto de partida os processos mentais inconscientes, com cujas peculiaridades nos tornamos familiarizados através da análise. Consideramos que são os processos mais antigos, primários, resíduos de uma fase de desenvolvimento em que eram o único tipo de processo mental. O propósito dominante obedecido por estes processos primários é fácil de reconhecer; ele é descrito como o princípio de prazer-desprazer [Lust-Unlust], ou, mais sucintamente, princípio de prazer. Estes processos esforçam-se por alcançar prazer; a atividade psíquica afasta-se de qualquer evento que possa despertar desprazer. (Aqui, temos a repressão.) Nossos sonhos à noite e, quando acordados, nossa tendência a afastar-nos de impressões aflitivas são resquícios do predomínio deste princípio e provas do seu poder.
[...] Os pensamentos latentes do sonho não diferem em nenhum aspecto dos produtos de nossa atividade consciente habitual; merecem o nome de pensamentos pré-conscientes e, em verdade, podem ter sido conscientes em algum momento do estado de vigília. Entretanto, por entrarem em contato com as tendências inconscientes durante a noite, assimilaram-se a estas, degradaram-se, por assim dizer, à condição de pensamentos inconscientes, e ficaram sujeitos às leis pelas quais a atividade inconsciente é dirigida. E aqui temos a oportunidade de aprender o que não poderíamos ter adivinhado pela especulação, ou por outra fonte de informação empírica - que as leis da atividade inconsciente diferem amplamente daquelas da consciente. Inferimos pormenorizadamente quais são as peculiaridades do Inconsciente e podemos esperar aprender ainda mais sobre elas mediante investigação mais profunda dos processos da formação onírica.
[...] A inconsciência pareceu-nos, a princípio, apenas uma característica enigmática de um ato psíquico definido. Atualmente ela significa mais para nós. É sinal de que este ato partilha da natureza de determinada categoria psíquica, que conhecemos por outras características mais importantes, e que ele pertence a um sistema de atividade psíquica merecedor de nossa plena atenção. O valor índice do inconsciente ultrapassou de muito sua importância como propriedade. O sistema assinalado pelo fato de seus atos isolados serem inconscientes é chamado ‘O Inconsciente’, por falta de termo melhor e menos ambíguo. Em alemão, proponho denotar esse sistema pelas letras Ubw, abreviatura da palavra ‘Unbewusst‘. E este é o terceiro e mais significativo sentido que o termo ‘inconsciente’ adquiriu na psicanálise.
[...] O estado atual de nosso conhecimento leva-nos a concluir que o fator essencial na construção de sonhos é um desejo inconsciente - geralmente um desejo infantil, agora reprimido - que pode vir a se expressar nesse material somático ou psíquico (e também nos resíduos diurnos, portanto) e pode abastecer estes com uma força que os capacita a forçar seu caminho em direção à consciência, mesmo durante a suspensão do pensamento, à noite. O sonho é, em todos os casos, uma realização deste desejo inconsciente, seja o que for que possa conter mais - advertência, reflexão, admissão, ou qualquer outra parte do rico conteúdo do estado de vigília pré-consciente que continuou, sem ser tratado, noite adentro. É este desejo inconsciente que dá à elaboração onírica seu caráter peculiar, como revisão inconsciente do material pré-consciente. Um psicanalista pode caracterizar como sonhos apenas os produtos da elaboração onírica: apesar do fato de só se chegar aos pensamentos oníricos latentes a partir da interpretação do sonho, ele não pode considerá-los como parte deste, mas apenas como parte da reflexão pré-consciente. (A revisão secundária pela instância consciente é aqui considerada como parte da elaboração onírica. Mesmo que devêssemos separá-la, isto não envolveria nenhuma alteração em nossa concepção. Teríamos então de dizer: os sonhos, no sentido analítico, compreendem a elaboração onírica propriamente dita, juntamente com a revisão secundária de seus produtos.) A conclusão a ser tirada destas considerações é que não se pode colocar o caráter realizador de desejos dos sonhos no mesmo nível que seu caráter de advertência, admissão, tentativa de solução etc., sem negar o conceito de uma dimensão psíquica de profundidade, o que equivale a dizer, sem negar o ponto de vista da psicanálise.

O CASO SCHREBER – O livro O caso Schreber, artigos sobre técnica e outros trabalhos, de Sigmund Freud, trata acerca da história clínica, o estado de beatitude, os delírios, a tentativa de interpretação, os delírios de perseguição, substituição, sobre o mecanismo da paranoia, delírios de ciúme, erotomania, repressão, fixação, o fracasso da depressão e a paranoia, com um pós-escrito a respeito do caso. Em seguida traz artigos sobre a técnica abordando sobre o manejo da interpretação de sonhos na psicanálise, a dinâmica de transferência, recomendações aos médicos que exercem a psicanálise, sobre o início do tratamento, recordar, refletir e elaborar, observações sobre o amor transferencial, os sonhos no folclore, o simbolismo do pênis em sonhos que ocorrem no folclore, um sonho mau, simbolismo das fezes e ações oníricas relacionadas, ouro de sonho, cagou na sepultura, a luz da vida, um sonho vivido, sonho e realidade, a ascensão do camponês ao céu, estúpido, medo, o anel da felicidade, não adianta chorar sobre o leite derramado, sobre a psicanálise, formulações sobre os dois princípios do funcionamento mental, tipos de desencadeamento da neurose, contribuições a um debate sobre a masturbação, uma nota sobre o inconsciente na psicanálise, um sonho probatório, a ocorrência em sonhos do material oriundo dos contos de fada, o tema dos três escrínios, duas mentiras contadas por crianças, a disposição à neurose obsessiva, breves escritos e a significação das sequências de vogas.

REFERÊNCIA
FREUD, Sigmund. O caso Schreber, artigos sobre técnica e outros trabalhos. Rio de Janeiro: Imago, 1980.

Veja mais aqui.