VOLUME 1 – [...]
Os signos vocais têm uma linearidade temporal, e é
essa sobrelinearidade que estabelece sua desterritorialização específica, sua diferença face à
linearidade genética. Com efeito, esta é, antes de mais nada, espacial, mesmo
se seus segmentos são construídos e reproduzidos sucessivamente; tanto que não
exige qualquer sobrecodificação efetiva nesse nível, mas somente fenômenos de
ajuntamento, regulações locais e interações parciais (a sobrecodificação só
intervirá no nível de integrações implicando ordens de grandeza diferentes).
[...] É essa propriedade de sobrecodificação
ou de sobrelinearidade que
explica o fato de não haver, na linguagem, somente independência da expressão
em relação ao conteúdo, mas também independência da forma de expressão em
relação às substâncias: a tradução é possível porque uma mesma forma pode
passar de uma substância a outra, contrariamente ao que acontece no código
genético, por exemplo, entre as cadeias de ARN e ADN. Veremos como essa
situação suscita certas pretensões imperialistas da linguagem, que se
enunciam com ingenuidade nas fórmulas do tipo: "toda semiologia de um
sistema não-linguístico deve recorrer à mediação da língua.
[...] A língua é o interpretante de todos ou outros sistemas, linguísticos e
não-linguísticos". Isto equivale a abstrair uma característica da
linguagem para dizer que os outros estratos só podem participar dessa
característica se falados. Isto seria de
se esperar. Contudo,
mais positivamente, deve-se
constatar que essa imanência de uma tradução universal à
linguagem faz com que os epistratos e
os paraestratos, na
ordem das superposições, difusões,
comunicações, ladeamentos, procedam de modo completamente diferente do
que nos outros estratos: todos os movimentos humanos, mesmo os mais violentos,
implicam traduções.
VOLUME 2 – [...] A professora não se questiona
quando interroga um aluno, assim como não se questiona quando ensina uma regra
de gramática ou de cálculo. Ela "ensigna", dá ordens, comanda. Os
mandamentos do professor não são exteriores nem se acrescentam ao que ele nos
ensina. Não provêm de significações primeiras, não são a consequência de
informações: a ordem se apoia sempre, e desde o início, em ordens, por isso é
redundância. A máquina do ensino obrigatório não comunica informações, mas
impõe à criança coordenadas semióticas com todas as bases duais da gramática (masculino-feminino,
singular-plural, substantivo-verbo, sujeito do enunciado-sujeito de enunciação
etc). A unidade elementar da linguagem — o enunciado — é a palavra de ordem.
Mais do que o senso comum, faculdade que centralizaria as informações, é
preciso definir uma faculdade abominável que consiste em emitir, receber e
transmitir as palavras de ordem. A linguagem não é mesmo feita para que se
acredite nela, mas para obedecer e fazer obedecer. "A baronesa não tem a
mínima intenção de me convencer de sua boa fé, ela me indica simplesmente
aquilo que prefere me ver fingir admitir". Isso pode ser percebido nos
informes da polícia ou do governo, que pouco se preocupam com a verossimilhança
ou com a veracidade, mas que definem muito bem o que deve ser observado e guardado.
A indiferença dos comunicados em relação a qualquer credibilidade frequentemente
beira a provocação. O que prova que se trata de uma outra coisa. Mas deixemos
bem claro: a linguagem não exige mais do que isso. Spengler observa que as formas
fundamentais da fala não são o enunciado de um juízo nem a expressão de um
sentimento, mas "o comando, o testemunho de obediência, a asserção, a
pergunta, a afirmação ou a negação", frases muito curtas que comandam a
vida e que são inseparáveis dos empreendimentos ou das grandes realizações:
"Pronto?", "Sim", "Vamos". As palavras não são
ferramentas; mas damos às crianças linguagem, canetas e cadernos, assim como
damos pás e picaretas aos operários. Uma regra de gramática é um marcador de
poder, antes de ser um marcador sintático. A ordem não se relaciona com
significações prévias, nem com uma organização prévia de unidades distintivas,
mas sim o inverso. A informação é apenas o mínimo estritamente necessário para
a emissão, transmissão e observação das ordens consideradas como comandos. É
preciso estar suficientemente informado para não confundir Au feu! (Fogo!) com Au jeu! (Jogo!), ou para evitar a
situação deveras desagradável do professor e do aluno segundo Lewis Carroll (o
professor lança uma questão do alto da escadaria, transmitida pelos valetes que
a deformam a cada degrau, ao passo que o aluno, embaixo, no pátio, envia uma
resposta, ela mesma deformada, a cada etapa da subida). A linguagem não é a
vida, ela dá ordens à vida; a vida não fala, ela escuta e aguarda. Em toda
palavra de ordem, mesmo de um pai a seu filho, há uma pequena sentença de morte
— um Veredito, dizia Kafka. O difícil é precisar o estatuto e a extensão da
palavra de ordem. Não se trata de uma origem da linguagem, já que a palavra de
ordem é apenas uma função-linguagem, uma função coextensiva à linguagem. Se a
linguagem parece sempre supor a linguagem, se não se pode fixar um ponto de
partida não-linguístico, é porque a linguagem não é estabelecida entre algo
visto (ou sentido) e algo dito, mas vai sempre de um dizer a um dizer. Não acreditamos,
a esse respeito, que a narrativa consista em comunicar o que se viu, mas em
transmitir o que se ouviu, o que um outro disse. Ouvir dizer. Nem mesmo basta
evocar uma visão deformante vinda da paixão. A "primeira" linguagem,
ou, antes, a primeira determinação que preenche a linguagem, não é o tropo ou a
metáfora, é o discurso indireto. A
importância que se quis dar à metáfora, à metonímia, revela-se desastrosa para
o estudo da linguagem. Metáforas e metonímias são apenas efeitos que só
pertencem à linguagem quando já supõem o discurso indireto. Existem muitas
paixões em uma paixão, e todos os tipos de voz em uma voz, todo um rumor, glossolalia:
isto porque todo discurso é indireto, e a translação própria à linguagem é a do
discurso indireto. Benveniste nega que a abelha tenha uma linguagem, ainda que
disponha de uma codificação orgânica, e até
mesmo se utilize de tropos. Ela não tem linguagem porque é capaz de
comunicar o que viu, mas não de transmitir o que lhe foi comunicado. A abelha
que percebeu um alimento pode comunicar a mensagem àquelas que não o
perceberam; mas a que não o percebeu não pode transmiti-lo às outras que
igualmente não o perceberam. A linguagem não se contenta em ir de um primeiro a
um segundo, de alguém que viu a alguém que não viu, mas vai necessariamente de
um segundo a um terceiro, não tendo, nenhum deles, visto. É nesse sentido que a
linguagem é transmissão de palavra funcionando como palavra de ordem, e não
comunicação de um signo como informação. A linguagem é um mapa e não um
decalque. Mas em quê a palavra de ordem é uma função coextensiva à linguagem,
visto que a ordem, o comando, parecem remeter a um tipo restrito de proposições
explícitas marcadas pelo imperativo?
VOLUME 3 – [...]
Havíamos
encontrado dois eixos: um de significância e outro de subjetivação. Eram duas
semióticas bastante diferentes, ou mesmo dois estratos. Mas a significância não
existe sem um muro branco sobre o qual inscreve seus signos e suas redundâncias.
A subjetivação não existe sem um buraco negro onde aloja sua consciência, sua
paixão, suas redundâncias. Como só existem semióticas mistas ou como os
estratos nunca ocorrem sozinhos, havendo pelo menos dois, não devemos nos
surpreender com a montagem de um dispositivo muito especial em seu cruzamento.
É entretanto curioso, um rosto: sistema muro
branco-buraco negro. Grande rosto com bochechas brancas, rosto de giz
furado com olhos como buraco negro. Cabeça de clown, clown branco, pierrô lunar, anjo da morte, santo sudário.
O rosto não é um invólucro exterior àquele que fala, que pensa ou que sente. A
forma do significante na linguagem, suas próprias unidades continuariam
indeterminadas se o eventual ouvinte não guiasse suas escolhas pelo rosto daquele
que fala ("veja, ele parece irritado...", "ele não poderia ter
dito isso...", "você vê meu rosto quando eu converso com você...",
"olhe bem para mim..."). Uma criança, uma mulher, uma mãe de família,
um homem, um pai, um chefe, um professor primário, um policial, não falam uma
língua em geral, mas uma língua cujos traços significantes são indexados nos
traços de rostidade específicos. Os rostos não são primeiramente individuais,
eles definem zonas de frequência ou de probabilidade, delimitam um campo que
neutraliza antecipadamente as expressões e conexões rebeldes às significações
conformes. Do mesmo modo, a forma da subjetividade, consciência ou paixão,
permaneceria absolutamente vazia se os rostos não formassem lugares de
ressonância que selecionam o real mental ou sentido, tornando-o antecipadamente
conforme a uma realidade dominante. O rosto é, ele mesmo, redundância. E faz
ele mesmo redundância com as redundâncias de significância ou frequência, e também
com as de ressonância ou de subjetividade. O rosto constrói o muro do qual o
significante necessita para ricochetear, constitui o muro do significante, o
quadro ou a tela. O rosto escava o buraco de que a subjetivação necessita para
atravessar, constitui o buraco negro da subjetividade como consciência ou
paixão, a câmera, o terceiro olho. Ou será preciso dizer as coisas de outro modo? Não é exatamente o rosto
que constitui o muro do significante, nem o buraco da subjetividade. O rosto,
pelo menos o rosto concreto, começaria a se esboçar vagamente sobre o muro branco. Começaria a
aparecer vagamente no buraco
negro. O close do rosto no cinema tem como que dois pólos: fazer com que o
rosto reflita a luz ou, ao contrário, acentuar suas sombras até mergulhá-lo
"em uma impiedosa obscuridade".
VOLUME 4 – [...]
Um devir não é uma
correspondência de relações. Mas tampouco é ele uma semelhança, uma imitação e,
em última instância, uma identificação. Toda a crítica estruturalista da série
parece inevitável. Devir não é progredir nem regredir segundo uma série. E
sobretudo devir não se faz na imaginação, mesmo quando a imaginação atinge o
nível cósmico ou dinâmico mais elevado, como em Jung ou Bachelard. Os
devires-animais não são sonhos nem fantasmas. Eles são perfeitamente reais. Mas
de que realidade se trata? Pois se o devir animal não consiste em se fazer de
animal ou imitá-lo, é evidente também que o homem não se torna
"realmente" animal, como tampouco o animal se torna
"realmente" outra coisa. O devir não produz outra coisa senão ele
próprio. É uma falsa alternativa que nos faz dizer: ou imitamos, ou somos. O
que é real é o próprio devir, o bloco de devir, e não os termos supostamente
fixos pelos quais passaria aquele que se torna. O devir pode e deve ser
qualificado como devir-animal sem ter um termo que seria o animal que se
tornou. O devir-animal do homem é real, sem que seja real o animal que ele se
torna; e, simultaneamente, o devir outro do animal é real sem que esse outro seja
real. É este ponto que será necessário explicar: como um devir não tem sujeito
distinto de si mesmo; mas também como ele não tem termo, porque seu termo por
sua vez só existe tomado num outro devir do qual ele é o sujeito, e que
coexiste, que faz bloco com o primeiro. É o princípio de uma realidade própria
ao devir (a ideia bergsoniana de uma coexistência de "durações" muito
diferentes, superiores ou inferiores à "nossa", e todas
comunicantes). Enfim, devir não é uma evolução, ao menos uma evolução por dependência
e filiação. O devir nada produz por filiação; toda filiação seria imaginária. O
devir é sempre de uma ordem outra que a da filiação. Ele é da ordem da aliança.
Se a evolução comporta verdadeiros devires, é no vasto domínio das simbioses que coloca em jogo seres de
escalas e reinos inteiramente diferentes, sem qualquer filiação possível. Há um
bloco de devir que toma a vespa e a orquídea, mas do qual nenhuma
vespa-orquídea pode descender. Há um bloco de devir que toma o gato e o
babuíno, e cuja aliança é operada por um vírus C. Há um bloco de devir entre
raízes jovens e certos micro organismos, as matérias orgânicas sintetizadas nas
folhas operando a aliança (rizosfera). Se o neo-evolucionismo afirmou sua originalidade,
é em parte em relação a esses fenômenos nos quais a evolução não vai de um
menos diferenciado a um mais diferenciado, e cessa de ser uma evolução
filiativa hereditária para tornar-se antes comunicativa ou contagiosa.
Preferimos então chamar de "involução" essa forma de evolução que se
faz entre heterogêneos, sobretudo com a condição de que não se confunda a involução
com uma regressão. O devir é involutivo, a involução é criadora. Regredir é ir
em direção ao menos diferenciado. Mas involuir é formar um bloco que corre
seguindo sua própria linha, "entre" os termos postos em jogo, e sob
as relações assinaláveis. O neo-evolucionismo parece-nos importante por duas
razões: o animal não se define mais por características (específicas,
genéricas, etc.), mas por populações, variáveis de um meio para outro ou num
mesmo meio; o movimento não se faz mais apenas ou sobretudo por produções
filiativas, mas por comunicações transversais entre populações heterogêneas.
Devir é um rizoma, não é uma árvore classificatória nem genealógica. Devir não
é certamente imitar, nem identificar-se; nem regredir-progredir; nem corresponder,
instaurar relações correspondentes; nem produzir, produzir uma filiação,
produzir por filiação. Devir é um verbo tendo toda sua consistência; ele não se
reduz, ele não nos conduz a "parecer", nem "ser", nem
"equivaler", nem "produzir".
VOLUME 5 – [...]
As sociedades
primitivas segmentárias foram definidas com frequência como sociedades sem
Estado, isto é, em que não aparecem órgãos de poder distintos. Mas disto concluía-se que essas sociedades
não atingiram o grau de desenvolvimento
econômico, ou o nível de diferenciação política que tornariam a um só tempo possível e
inevitável a formação de um aparelho de Estado:
os primitivos, desde
logo, "não entendem" um
aparelho tão complexo. O primeiro
interesse das teses de Clastres está em romper com esse postulado
evolucionista. Clastres não só duvida que o Estado seja o produto de
um desenvolvimento econômico determinável, mas indaga se as sociedades primitivas
não teriam a preocupação
potencial de conjurar
e prevenir esse monstro
que supostamente não compreendem. Conjurar a formação de um
aparelho de Estado, tornar impossível uma tal formação, tal seria o objeto de
um certo número de mecanismos sociais primitivos, ainda que deles não se tenha
uma consciência clara. Sem dúvida, as
sociedades primitivas possuem chefes. Mas o Estado não se define pela
existência de chefes, e sim
pela perpetuação ou
conservação de órgãos
de poder. A preocupação do Estado é conservar. Portanto,
são necessárias instituições especiais para
que um chefe possa
tornar-se homem de Estado,
porém requer-se não menos
mecanismos coletivos difusos para impedir que isso ocorra. Os mecanismos
conjuratórios ou preventivos fazem parte da chefia, e a impedem que se
cristalize num aparelho distinto do próprio corpo social. Clastres descreve
essa situação do chefe cuja única arma
instituída é seu prestígio, cujo único
meio é a persuasão, cuja única regra é o pressentimento dos desejos do grupo: o
chefe assemelha-se mais a um líder ou a uma vedete do que a um homem de poder,
e corre sempre
o risco de ser renegado, abandonado pelos
seus. E mais: Clastres
considera que, nas
sociedades primitivas, a
guerra é o
mecanismo mais seguro
contra a formação
do Estado: é que a guerra mantém a dispersão e a segmentaridade dos
grupos, e o guerreiro é
ele mesmo tomado num processo
de acumulação de
suas façanhas que o conduz a uma solidão e a uma morte prestigiosas,
porém sem poder.
MIL PLATÔS - A
coleção Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia,
do filósofo francês Gilles Deleuze (1925-1995) e do filósofo, psicanalista e
militante revolucionário francês Félix Guattari (1930-1992), traz no primeiro
volume uma abordagem acerca do rizoma, um só ou vários lobos, a geologia da
moral – quem a terra pensa que é? -; no segundo volume trata de postulados da
linguística e sobre alguns regimes de signos; no terceiro capítulo trata sobre
como produzir um corpo sem órgãos, rostidade, três novelas ou o que aconteceu,
micropolítica e segmentaridade. No quarto volume aborda sobre o devir-intenso,
devir-animal, devir-imperceptúvel e do ritornelo. No quinto e último capítulo
traz um tratado de nomadologia, a máquina de guerra, aparelho de captura, o
liso e o estriado e uma conclusão acerca das regras concretas e máquinas
abstratas.
REFERÊNCIA
DELEUZE,
Gilles; GUATTARI, Félix. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. Volume 1. Rio
de Janeiro: 34, 1995.
______.
Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. Volume 2. Rio de Janeiro: 34, 1995.
______.
Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. Volume 3. Rio de Janeiro: 34, 1996.
______.
Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. Volume 4. Rio de Janeiro: 34, 1997.
______.
Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. Volume 5. Rio de Janeiro: 34, 1997.
Veja
mais aqui.