sexta-feira, 9 de janeiro de 2015

O SEGUNDO SEXO, DE SIMONE DE BEAUVOIR


[...] O mito da mulher desempenha um papel considerável na literatura; mas que importância tem na vida quotidiana? Em que medida afeta os costumes e as condutas individuais? Para responder a essas perguntas seria necessário determinar as relações que mantém com a realidade. Há diversas espécies de mitos. Este, sublimando um aspecto imutável da condição humana que é o "seccionamento" da humanidade em duas categorias de indivíduos, é um mito estático; projeta em um céu platônico uma realidade apreendida na experiência ou conceitualizada a partir da experiência. Ao fato, ao valor, à significação, à noção, à lei empírica, ele substitui uma ideia transcendente, não temporal, imutável, necessária. Essa ideia escapa a qualquer contestação porquanto se situa além do dado; é dotada de uma verdade absoluta. Assim, à existência dispersa, contingente e múltipla das mulheres, o pensamento mítico opõe o Eterno Feminino único e cristalizado; se a definição que se dá desse Eterno Feminino é contrariada pela conduta das mulheres de carne e osso, estas é que estão erradas. Declara-se que as mulheres não são femininas e não que a Feminilidade é uma entidade. Os desmentidos da experiência nada podem contra o mito. Entretanto, de certa maneira, este tem sua fonte nela. Assim é exato que a mulher é outra e essa alteridade é concretamente sentida no desejo, no amplexo, no amor; mas a relação real é de reciprocidade; como tal, ela engendra dramas autênticos: através do erotismo, do amor, da amizade e suas alternativas de decepção, ódio, rivalidade, ela é luta de consciência que se consideram essenciais, é reconhecimento de liberdades que se confirmam mutuamente, é a passagem indefinida da inimizade à cumplicidade. Pôr a Mulher é pôr o Outro absoluto, sem reciprocidade, recusando contra a experiência que ela seja um sujeito, um semelhante. Na realidade concreta, as mulheres manifestam-se sob aspectos diversos; mas cada um dos mitos edificados a propósito da mulher pretende resumi-la inteiramente. Cada qual se afirmando único, a consequência é existir uma pluralidade de mitos incompatíveis e os homens permanecerem atônitos perante as estranhas incoerências da ideia de Feminilidade; como toda mulher participa de uma pluralidade desses arquétipos que, todos, pretendem encerrar sua única Verdade, os homens reencontram, assim, ante suas companheiras o velho espanto dos sofistas que mal compreendiam que o homem pudesse ser louro e moreno a um tempo. A passagem para o absoluto já se exprime nas representações sociais. As relações aí se fixam facilmente em classes, as funções em tipos, assim como na mentalidade infantil as relações fixam-se em coisas. Por exemplo, a sociedade patriarcal, apoiada na conservação do patrimônio, implica necessariamente, ao lado de indivíduos que detêm e transmitem os bens, a existência de homens e mulheres que os arrancam a seus proprietários e os fazem circular; os homens — aventureiros, vigaristas, ladrões, especuladores — são geralmente condenados pela coletividade; as mulheres, usando de sua atração erótica, têm a possibilidade de convidar os jovens, e até os pais de família, a dissiparem seu patrimônio sem sair da legalidade; apropriam-se de sua fortuna ou captam sua herança; sendo esse papel considerado nefasto, chamam "mulheres más" as que o desempenham.
Na realidade, elas podem, ao contrário, apresentar-se em outro lar — o do pai, o do irmão, do marido ou do amante — como um anjo da guarda; tal ou qual cortesã, que explora ricos financistas, é um mecenas para pintores e escritores. A ambiguidade da personagem de Aspásia, de Mme de Pompadour torna-se facilmente compreensível numa experiência concreta. Mas, se se afirma que a mulher é a fêmea do louva-a-deus, a mandrágora, o demônio, confunde-se o espírito ao descobrir igualmente nela a Musa, a Deusa-Mãe, Beatriz. Como as representações coletivas e, entre outros, os tipos sociais definem-se geralmente por pares de termos opostos, a ambivalência parecerá uma propriedade intrínseca do Eterno Feminino. A mãe santa tem como correlativo a madrasta cruel; a moça angélica, a virgem perversa: por isso ora se dirá que a Mãe é igual à Vida, ora que é igual à Morte, que toda virgem é puro espírito ou carne votada ao diabo. Não é evidentemente a realidade que dita à sociedade ou aos indivíduos a escolha entre os dois princípios opostos de unificação; em cada época, em cada caso, sociedade e indivíduos decidem de acordo com suas necessidades. Muitas vezes projetam no mito adotado as instituições e os valores a que estão apegados. Assim, o paternalismo, que reclama a mulher no lar, define-a como sentimento, interioridade e imanência; na realidade, todo existente é, ao mesmo tempo, imanência e transcendência; quando não lhe propõem um objetivo, quando o impedem de atingir algum, quando o frustram em sua vitória, sua transcendência cai inutilmente no passado, isto é, recai na imanência; é o destino da mulher, no patriarcado; não se trata, porém, da mesma vocação tal como a escravidão não é a vocação do escravo. Percebe-se claramente, em Comte, o desenvolvimento dessa mitologia. Identificar a Mulher ao Altruísmo é garantir ao homem direitos absolutos à sua dedicação, é impor às mulheres um dever-ser categórico.
Não se deve confundir o mito com a apreensão de uma significação; a significação é imanente ao objeto; ela é revelada à consciência numa experiência viva ao passo que o mito é uma ideia transcendente que escapa a toda tomada de consciência. Quando, em Age d'homme, descreve sua visão dos órgãos femininos, Michel Leiris oferece-nos significações e não elabora nenhum mito. O deslumbramento ante o corpo feminino, a repugnância pelo sangue menstrual são apreensões de uma realidade concreta. Nada há de mítico na experiência que descobre as qualidades voluptuosas da carne feminina e não se passa ao mito quando se tenta exprimi-las mediante comparações com flores ou pedras. Mas dizer que a Mulher é a Carne, que a Carne é Noite e Morte, ou que é o esplendor do Cosmo, é abandonar a verdade da terra e alçar voo para um céu vazio. Porque o homem também é carne para a mulher; e esta é outra coisa além de um objeto carnal; e a carne assume, para cada um e em cada experiência, significações singulares. É, também, inteiramente verdade que a mulher — como o homem — é um ser arraigado na Natureza; ela é mais do que o homem escravizada à espécie, sua animalidade é mais manifesta, mas, nela como nele, o dado é assumido pela existência, pertence também ao reino humano. Assimilá-la à Natureza é um simples parti pris.
Poucos mitos foram mais vantajosos do que esse para a casta dominante: justifica todos os privilégios e autoriza mesmo a abusar deles. Os homens não precisam preocupar-se em aliviar os sofrimentos e encargos que são fisiològicamente a parte da mulher, porquanto "são da vontade da Natureza"; eles se valem do pretexto para aumentar ainda a miséria da condição feminina, para denegar, por exemplo, à mulher, qualquer direito ao prazer sexual, para fazê-la trabalhar como um animal de carga.
De todos esses mitos nenhum se acha mais enraizado nos corações masculinos do que o do "mistério" feminino. Tem numerosas vantagens. E primeiramente permite explicar sem dificuldades o que parece inexplicável; o homem que não "compreende" uma mulher sente-se feliz em substituir uma resistência objetiva a uma insuficiência subjetiva; ao invés de admitir sua ignorância, reconhece a presença de um mistério fora de si: é um álibi que lisonjeia a um tempo a preguiça e a vaidade. Um coração apaixonado evita, assim, muitas decepções; se as condutas da bem-amada são caprichosas, suas reflexões, estúpidas, o mistério serve de desculpa. Enfim, graças ao mistério, perpetua-se essa relação negativa que se afigurava a Kierkegaard infinitamente preferível a uma posse positiva; em face de um enigma vivo, o homem permanece só: só com seus sonhos, esperanças, temores, amor e vaidade; esse jogo subjetivo que pode ir do vício ao êxtase místico é para muitos uma experiência mais atraente do que uma relação autêntica com um ser humano. Em que bases assenta, pois, uma ilusão tão proveitosa? Seguramente, em certo sentido, a mulher é misteriosa, "misteriosa como todo mundo", na expressão de Maeterlinck. Cada um só é sujeito para si; cada um só pode apreender a si unicamente em sua imanência. Deste ponto de vista, o outro é sempre mistério. Aos olhos dos homens a opacidade do para-si é mais flagrante no outro feminino; eles não podem, por nenhum efeito de simpatia, penetrar-lhe a experiência singular. A qualidade do prazer erótico da mulher, os incômodos da menstruação, as dores do parto, eles estão condenados a ignorá-los.
Na verdade, há reciprocidade do mistério; enquanto outro, e outro do sexo masculino, há no coração de todo homem uma presença fechada sobre si mesma e impenetrável à mulher; ela ignora o que representa o erotismo do macho. Mas, segundo a regra universal que verificamos, as categorias através das quais os homens encaram o mundo são constituídas, do ponto de vista deles, como absolutas: eles desconhecem, nisso como em tudo, a reciprocidade. Mistério para o homem, a mulher é encarada como mistério em si.  
A bem dizer, a situação dela a predispõe singularmente a ser considerada sob esse aspecto. Seu destino fisiológico é muito complexo; ela mesma o suporta como uma história estranha; seu corpo não é para ela uma expressão clara de si mesma; ela  sente-se nele alienada; o laço que em todo indivíduo liga a vida fisiológica à vida física, ou para melhor dizer, a relação existente entre a facticidade de um indivíduo e a liberdade que a assume, é o mais difícil enigma implicado pela condição humana: é na mulher que esse enigma se põe da maneira mais perturbadora. Mas o que se chama mistério não é a solidão subjetiva da consciência, nem o segredo da vida orgânica. É ao nível da comunicação que a palavra assume seu sentido verdadeiro: não se reduz ao puro silêncio, à noite, à ausência; implica uma presença balbuciante que malogra em se manifestar. Dizer que a mulher é mistério não é dizer que ela se cala e sim que sua linguagem não é compreendida; ela está presente, mas escondida sob véus; existe além dessas incertas aparições. Quem é ela? Um anjo, um demônio, uma inspirada, uma comediante? Ou se supõe que existem para essas perguntas respostas impossíveis de descobrir, ou antes, que nenhuma é adequada porque uma ambiguidade fundamental afeta o ser feminino; em seu coração, ela é para si mesma indefinível: uma esfinge. O fato é que ela se veria bastante embaraçada em decidir quem ela é; a pergunta não comporta resposta; mas não porque a verdade recôndita seja demasiado móvel para se deixar aprisionar: é porque nesse terreno não há verdade. Um existente não é senão o que faz; o possível não supera o real, a essência não precede a existência: em sua pura subjetividade o ser humano não é nada. Medem-no pelos seus atos. De uma camponesa pode-se dizer que se trata de uma boa ou má trabalhadora, de uma atriz que tem ou não talento; mas se se considera uma mulher em sua presença imanente, nada absolutamente se pode dizer, ela está aquém de qualquer qualificação. Ora, nas relações amorosas ou conjugais, em todas as relações em que a mulher é a vassala, o outro, é em sua imanência que é apreendida. É impressionante o fato de a companheira, a colega, a associada não terem mistério; em compensação, se o vassalo é masculino, se diante de um homem ou de uma mulher mais velhos do que ele, mais ricos, um rapaz se apresenta como o objeto inessencial, envolve-se ele também de mistério. E isso nos revela uma infraestrutura do mistério feminino que é de ordem econômica. Um sentimento também não ê nada. "No terreno dos sentimentos o real não se distingue do imaginário, diz Gide. E basta imaginar que se ama para amar, por isso basta dizer que se imagina amar, quando se ama, para amar um pouco menos..." Entre o imaginário e o real só há discriminação através das condutas. Detendo o homem neste mundo uma situação privilegiada, êle é que pode manifestar ativamente seu amor; muitas vezes sustenta a mulher ou a ajuda, Desposando-a, dá-lhe uma posição social; dá-lhe presentes; sua independência econômica e social permite-lhe iniciativas e invenções. Separado de Mme de Villeparisis, o Sr. de Norpois é quem fazia viagens de vinte e quatro horas para vê-la. Muitas vezes ele tem ocupações, ela não faz nada; o tempo que passa com Mme de Villeparisis êle o dá, ela o toma: com prazer, com paixão, ou simplesmente para se distrair? Aceita ela esses dons por amor ou por interesse? Ama o marido ou o casamento? Naturalmente as próprias provas que o homem dá são ambíguas: tal ou qual dom é feito por amor ou por piedade? Mas, enquanto normalmente a mulher encontra no comércio com o homem numerosas vantagens, o comércio com a mulher só beneficia o homem na medida em que ele a ama. Por isso, pelo conjunto de suas atitudes pode-se apreciar mais ou menos o grau de seu apego; ao passo que a mulher quase não tem meios de sondar o próprio coração; segundo seu temperamento, terá pontos de vista diferentes acerca de seus sentimentos, e enquanto os suportar passivamente nenhuma interpretação será mais verdadeira do que outra. Nos casos bastante raros em que ela detém os privilégios econômicos e sociais, o mistério inverte-se: o que demonstra que se liga não a este ou àquele sexo e sim a uma situação. Para grande número de mulheres os caminhos da transcendência estão barrados: como não fazem nada, não se podem fazer ser; perguntam-se indefinidamente o que poderiam vir a ser, o que as leva a indagar o que são: é uma interrogação vã; se o homem malogra em descobrir essa essência secreta é muito simplesmente porque ela não existe. Mantida à margem do mundo, a mulher não pode definir-se objetivamente através desse mundo e seu mistério cobre apenas um vazio. Demais, acontece que, como todos os oprimidos, dissimula deliberadamente sua figura objetiva; o escravo, o criado, o indígena, todos os que dependem dos caprichos de um senhor aprenderam a opor-lhe um sorriso imutável ou uma impassibilidade enigmática; escondem cuidadosamente seus verdadeiros sentimentos, suas verdadeiras condutas.
À mulher também ensinaram desde a adolescência a mentir aos homens, a trapacear, a usar de subterfúgios. Chega-se a eles com máscara: é prudente, hipócrita, comediante. Mas o Mistério feminino tal qual o reconhece o pensamento mítico é uma realidade mais profunda. Em verdade, acha-se  ele implicado imediatamente na mitologia do Outro absoluto. Se se admite que a consciência inessencial é, ela também, uma subjetividade translúcida, capaz de operar o Cogito, admite-se que é, na verdade, soberana e retorna ao essencial. Para que toda reciprocidade se apresente como impossível, é preciso que o Outro seja para si um outro, que sua subjetividade mesma seja afetada pela alteridade. Essa consciência que seria alienada enquanto consciência, em sua pura presença imanente, seria evidentemente Mistério; seria Mistério em si pelo fato de que o seria para si; seria o Mistério absoluto. Assim é que há, para além do segredo que sua dissimulação cria um mistério do Preto, do Amarelo, enquanto considerados absolutamente como o Outro inessencial. Deve-se observar que o cidadão norte-americano, que desnorteia profundamente o europeu médio, não é entretanto considerado "misterioso": mais modestamente asseguram que não o entendem; do mesmo modo, a mulher nem sempre "compreende" o homem, mas não há mistério masculino; é que a América rica e o homem estão do lado do Senhor, e o Mistério é propriedade do escravo. Bem entendido, não se pode senão sonhar nos crepúsculos da má-fé acerca da realidade positiva do Mistério; como certas alucinações marginais, dissipa-se logo que se tenta fixá-lo.
A literatura malogra sempre ao pintar mulheres "misteriosas". Elas podem somente surgir no início de um romance como estranhas, enigmáticas; mas, a menos que a história permaneça inacabada, terminam por revelar seu segredo e são então personagens coerentes e translúcidos. Por exemplo, o herói dos livros de Peter Cheney não cessa de se espantar com os imprevisíveis caprichos das mulheres: nunca se pode adivinhar como vão conduzir-se, fazem abortar todos os cálculos; na verdade, logo que os motivos de seus atos são desvendados ao leitor, elas se apresentam como mecanismos muito simples: uma era espiã, outra ladra; por hábil que seja a intriga, há sempre uma chave e não poderia ser de outro modo, ainda que o autor tivesse todo o talento e toda a imaginação do mundo. O mistério nunca passa de uma miragem, dissipa-se quando se tenta apreendê-lo. Vemos assim que o mito se explica em grande parte pelo uso que dele faz o homem. O mito da mulher é um luxo. Só pode surgir se o homem escapa à urgente imposição de suas necessidades; quanto mais as relações são concretamente vividas, menos se idealizam. O felá do antigo Egito, o camponês beduíno, o artesão da Idade Média, o operário contemporâneo, têm, nas necessidades do trabalho e da pobreza, relações demasiado definidas com a mulher singular que é sua companheira para enfeitá-la como uma aura fasta ou nefasta. São as épocas e as classes a que se concedem os lazeres do sonho que erguem as estátuas negras ou brancas da feminilidade. Mas o luxo tem também uma utilidade. Tais sonhos são imperiosamente dirigidos por interesses. Por certo, em sua maior parte, os mitos têm raízes na atitude espontânea do homem para com sua própria existência e o mundo que o cerca: mas a superação da experiência em direção à ideia transcendente foi deliberadamente operada pela sociedade patriarcal para fins de auto justificação; através dos mitos, ela impunha aos indivíduos suas leis e costumes de maneira sensível e por imagens; sob uma forma mítica é que o imperativo coletivo se insinuava em cada consciência.
Por intermédio das religiões, das tradições, da linguagem, dos contos, das canções, do cinema, os mitos penetram até nas existências mais duramente jungidas às realidades materiais. Todos podem encontrar nesses mitos uma sublimação de suas modestas  experiências: enganado por uma mulher amada, um declara que ela é uma matriz danada; outro, obcecado pela impotência viril, encara a mulher como a fêmea do louva-a-deus; outro ainda compraz-se em companhia de sua mulher e ei-la Harmonia, Repouso, Terra nutriz. O gosto a uma eternidade barata, a um absoluto de bolso, que se depara na maioria dos homens, satisfaz-se com mito. A menor emoção, uma contrariedade, tomam o reflexo de uma ideia não temporal; essa ilusão lisonjeia agradàvelmente a vaidade.
O mito é uma dessas armadilhas da falsa objetividade em que se lança temeràriamente o espírito de gravidade. Trata-se mais uma vez, de substituir a experiência vivida e os livres julgamentos que ela reclama por um ídolo imoto. A uma relação autêntica com um existente autônomo, o mito da Mulher substitui a contemplação imóvel de uma miragem. "Miragem! Miragem! Ê preciso matá-las porque não podemos apanhá-las; ou então tranquilizá-las, informá-las, dissipar-lhe o gosto pelas jóias, fazer delas nossas companheiras iguais, nossas amigas íntimas, associadas neste mundo, vesti-las de outro modo, cortar-lhes os cabelos, dizer-lhes tudo...", exclama Laforgue. O homem nada teria a perder, muito pelo contrário, se renunciasse a fantasiar a mulher de símbolo. Os sonhos, quando são coletivos e dirigidos, são bem pobres e monótonos ao lado da realidade viva: para o verdadeiro sonhador, para o poeta, a realidade viva é uma fonte muito mais fecunda do que um maravilhoso puído. As épocas que mais amaram as mulheres não foram a do feudalismo cortês nem o galante século XIX: foram as épocas em que — como no século XVIII — os homens encararam as mulheres como semelhantes; é então que se apresentam como verdadeiramente romanescas: basta ler Les Liaisons dangereuses, Le Rouge et le Noir, Adeus às Armas, para percebê-lo. As heroínas de Laclos, Stendhal, Hemingway não têm mistério; nem por isso são menos atraentes. Reconhecer um ser humano na mulher não é empobrecer a experiência do homem: esta nada perderia de sua diversidade, de sua riqueza, de sua intensidade, se se assumisse em sua intersubjetividade; recusar os mitos não é destruir toda relação dramática entre os sexos, não é negar as significações que se revelam autenticamente ao homem através da realidade feminina; não é suprimir a poesia, o amor, a aventura, a felicidade, o sonho: é somente pedir que as condutas, os sentimentos, as paixões assentem na verdade. "A mulher se perde. Onde estão as mulheres? As mulheres de hoje não são mulheres", viu-se qual o sentido desses slogans misteriosos. Aos olhos dos homens — e da legião de mulheres que veem por esses olhos — não basta ter um corpo de mulher, nem assumir como amante, como mãe, a função de fêmea para ser "uma mulher de verdade"; através da sexualidade e da maternidade, o sujeito pode reivindicar sua autonomia; "a verdadeira mulher" é a que se aceita como Outro. Há na atitude dos homens de hoje uma duplicidade que cria na mulher um dilaceramento doloroso; eles aceitam em grande medida que a mulher seja um semelhante, uma igual; e, no entanto, continuam a exigir que ela permaneça o inessencial; para ela, esses dois destinos não são conciliáveis; ela hesita entre um e outro sem se adaptar exatamente a nenhum e daí sua falta de equilíbrio.
No homem não há nenhum hiato entre a vida pública e a vida privada: quanto mais êle se afirma seu domínio do mundo pela ação e pelo trabalho, mais revela viril; nele, os valores humanos e os valores vitais se confundem; ao passo que os êxitos autônomos da mulher estão em contradição com sua feminilidade, porquanto se exige da "verdadeira mulher" que se torne objeto, que seja o Outro. É muito possível que, neste ponto, a sensibilidade e até a sexualidade do homem se modifiquem. Uma nova estética já nasceu. Se a moda dos bustos chatos e das ancas magras — da mulher-efebo — durou pouco, não se voltou contudo ao ideal opulento dos séculos passados. Pede-se ao corpo feminino que seja carne, mas discretamente; deve ser esbelto e não empapado de banha; com músculos, flexível e robusto é preciso que indique a transcendência; preferem-no, não branco como uma planta de estufa, mas tendo enfrentado o sol universal, tostado como um torso de trabalhador. Tornando-se prático, o vestido da mulher não a fez parecer assexuada: ao contrário, as saias curtas valorizaram mais do que outrora as pernas e as coxas. Não se compreende por que o trabalho a privaria de sua atração erótica. Possuir a mulher ao mesmo tempo como personagem social e como presa carnal pode ser perturbador: em uma séria de desenhos de Peynet publicados recentemente, via-se um jovem noivo abandonar a noiva porque era seduzido pela bonita prefeita que se dispunha a celebrar o casamento. O fato de uma mulher exercer um "ofício viril" e ser ao mesmo tempo desejável foi durante muito tempo um tema de piadas mais ou menos livres. Pouco a pouco, o escândalo e a ironia se embotaram e parece que nova forma de erotismo está nascendo: talvez venha a engendrar novos mitos.
O que é certo é que hoje é muito difícil às mulheres assumirem concomitantemente sua condição de indivíduo autônomo e seu destino feminino; aí está a fonte dessas inépcias, dessas incompreensões que as levam, por vezes, a se considerar como um "sexo perdido". E, sem dúvida, é mais confortável suportar uma escravidão cega que trabalhar para se libertar: os mortos também estão mais bem adaptados à terra do que os vivos.
Como quer que seja, uma volta ao passado não é mais possível nem desejável. O que se deve esperar é que, por seu lado, os homens assumam sem reserva a situação que se vem criando; somente então a mulher poderá viver sem tragédia. Então poderá ver-se realizado o voto de Laforgue: "Ó moças, quando sereis nossos irmãos, nossos irmãos íntimos sem segunda intenção de exploração? Quando nos daremos o verdadeiro aperto de mãos?" Então "Mélusine não mais sob o peso da fatalidade desencadeada sobre ela pelo homem só, Mélusine libertada..." reencontrará seu "equilíbrio humano". Então ela será plenamente um ser humano "quando se quebrar a escravidão infinita da mulher, quando ela viver por ela e para ela, o homem — até hoje abominável — tendo-lhe dado a alforria".



O SEGUNDO SEXO – O livro O segundo sexo: fatos e mitos, da escritora, filósofa existencialista e feminista francesa Simone Lucie-Ernestine-Marie Bertrand de Beauvoir, mais conhecida como Simone de Beauvoir (1908-1986), alcançou repercussão internacional e marcou toda uma geração interessada, como ela, na abolição do mito do éternel feminin. Tendo sofrido e vencido pela inteligência as limitações seculares imposta à mulher, expõe nessa obra suas reivindicações e denuncias, de modo que fica demonstrada sua forma lucidamente didática que contribuiu de forma decisiva para a expansão da consciência feminina na segunda metade do séc. XX. O livro trata de temos como os dados biológicos a visão psicanalítica, o ponto de vista do materialismo histórico, Montherlant ou o pão do nojo, D. H. Lawrence ou o orgulho fálico, Claudel e a serva do Senhor, Breton ou a poesia e  Stendhal ou o romanesco do verdadeiro.

REFERÊNCIA
BEAUVOIR, Simone. O segundo sexo: fatos e mitos. São Paulo: Difusão Europeia do Livro, 1970.

Veja mais aqui e aqui.