[...] O mito da mulher
desempenha um papel considerável na literatura; mas que importância tem na vida
quotidiana? Em que medida afeta os costumes e as condutas individuais? Para
responder a essas perguntas seria necessário determinar as relações que mantém
com a realidade. Há diversas espécies de mitos. Este, sublimando um aspecto
imutável da condição humana que é o "seccionamento" da humanidade em
duas categorias de indivíduos, é um mito estático; projeta em um céu platônico
uma realidade apreendida na experiência ou conceitualizada a partir da
experiência. Ao fato, ao valor, à significação, à noção, à lei empírica, ele
substitui uma ideia transcendente, não temporal, imutável, necessária. Essa ideia
escapa a qualquer contestação porquanto se situa além do dado; é dotada de uma
verdade absoluta. Assim, à existência dispersa, contingente e múltipla das mulheres, o
pensamento mítico opõe o Eterno Feminino único e cristalizado; se a definição
que se dá desse Eterno Feminino é contrariada pela conduta das mulheres de
carne e osso, estas é que estão erradas. Declara-se que as mulheres não são
femininas e não que a Feminilidade é uma entidade. Os desmentidos da
experiência nada podem contra o mito. Entretanto, de certa maneira, este tem
sua fonte nela. Assim é exato que a mulher é outra e essa alteridade é
concretamente sentida no desejo, no amplexo, no amor; mas a relação real é de
reciprocidade; como tal, ela engendra dramas autênticos: através do erotismo,
do amor, da amizade e suas alternativas de decepção, ódio, rivalidade, ela é luta
de consciência que se consideram essenciais, é reconhecimento de liberdades que
se confirmam mutuamente, é a passagem indefinida da inimizade à cumplicidade.
Pôr a Mulher é pôr o Outro absoluto, sem reciprocidade, recusando contra a experiência
que ela seja um sujeito, um semelhante. Na realidade concreta, as mulheres
manifestam-se sob aspectos diversos; mas cada um dos mitos edificados a
propósito da mulher pretende resumi-la inteiramente. Cada qual se afirmando
único, a consequência é existir uma pluralidade de mitos incompatíveis e os
homens permanecerem atônitos perante as estranhas incoerências da ideia de
Feminilidade; como toda mulher participa de uma pluralidade desses arquétipos
que, todos, pretendem encerrar sua única Verdade, os homens reencontram, assim,
ante suas companheiras o velho espanto dos sofistas que mal compreendiam que o
homem pudesse ser louro e moreno a um tempo. A passagem para o absoluto já se
exprime nas representações sociais. As relações aí se fixam facilmente em
classes, as funções em tipos, assim como na mentalidade infantil as relações
fixam-se em coisas. Por exemplo, a sociedade patriarcal, apoiada na conservação
do patrimônio, implica necessariamente, ao lado de indivíduos que detêm e
transmitem os bens, a existência de homens e mulheres que os arrancam a seus
proprietários e os fazem circular; os homens — aventureiros, vigaristas, ladrões,
especuladores — são geralmente condenados pela coletividade; as mulheres,
usando de sua atração erótica, têm a possibilidade de convidar os jovens, e até
os pais de família, a dissiparem seu patrimônio sem sair da legalidade;
apropriam-se de sua fortuna ou captam sua herança; sendo esse papel considerado
nefasto, chamam "mulheres más" as que o desempenham.
Na
realidade, elas podem, ao contrário, apresentar-se em outro lar — o do pai, o
do irmão, do marido ou do amante — como um anjo da guarda; tal ou qual cortesã,
que explora ricos financistas, é um mecenas para pintores e escritores. A ambiguidade
da personagem de Aspásia, de Mme de Pompadour torna-se facilmente compreensível
numa experiência concreta. Mas, se se afirma que a mulher é a fêmea do
louva-a-deus, a mandrágora, o demônio, confunde-se o espírito ao descobrir igualmente
nela a Musa, a Deusa-Mãe, Beatriz. Como as representações coletivas e, entre
outros, os tipos sociais definem-se geralmente por pares de termos opostos, a ambivalência
parecerá uma propriedade intrínseca do Eterno Feminino. A mãe santa tem como
correlativo a madrasta cruel; a moça angélica, a virgem perversa: por isso ora
se dirá que a Mãe é igual à Vida, ora que é igual à Morte, que toda virgem é
puro espírito ou carne votada ao diabo. Não é evidentemente a realidade que
dita à sociedade ou aos indivíduos a escolha entre os dois princípios opostos
de unificação; em cada época, em cada caso, sociedade e indivíduos decidem de
acordo com suas necessidades. Muitas vezes projetam no mito adotado as
instituições e os valores a que estão apegados. Assim, o paternalismo, que
reclama a mulher no lar, define-a como sentimento, interioridade e imanência;
na realidade, todo existente é, ao mesmo tempo, imanência e transcendência;
quando não lhe propõem um objetivo, quando o impedem de atingir algum, quando o
frustram em sua vitória, sua transcendência cai inutilmente no passado, isto é,
recai na imanência; é o destino da mulher, no patriarcado; não se trata, porém,
da mesma vocação tal como a escravidão não é a vocação do escravo. Percebe-se
claramente, em Comte, o desenvolvimento dessa mitologia. Identificar a Mulher
ao Altruísmo é garantir ao homem direitos absolutos à sua dedicação, é impor às
mulheres um dever-ser categórico.
Não se deve
confundir o mito com a apreensão de uma significação; a significação é imanente
ao objeto; ela é revelada à consciência numa experiência viva ao passo que o
mito é uma ideia transcendente que escapa a toda tomada de consciência. Quando,
em Age d'homme, descreve sua
visão dos órgãos femininos, Michel Leiris oferece-nos significações e não
elabora nenhum mito. O deslumbramento ante o corpo feminino, a repugnância pelo
sangue menstrual são apreensões de uma realidade concreta. Nada há de mítico na
experiência que descobre as qualidades voluptuosas da carne feminina e não se
passa ao mito quando se tenta exprimi-las mediante comparações com flores ou
pedras. Mas dizer que a Mulher é a Carne, que a Carne é Noite e Morte, ou que é
o esplendor do Cosmo, é abandonar a verdade da terra e alçar voo para um céu
vazio. Porque o homem também é carne para a mulher; e esta é outra coisa além de
um objeto carnal; e a carne assume, para cada um e em cada experiência,
significações singulares. É, também, inteiramente verdade que a mulher — como o
homem — é um ser arraigado na Natureza; ela é mais do que o homem escravizada à
espécie, sua animalidade é mais manifesta, mas, nela como nele, o dado é
assumido pela existência, pertence também ao reino humano. Assimilá-la à
Natureza é um simples parti pris.
Poucos mitos foram
mais vantajosos do que esse para a casta dominante: justifica todos os
privilégios e autoriza mesmo a abusar deles. Os homens não precisam
preocupar-se em aliviar os sofrimentos e encargos que são fisiològicamente a
parte da mulher, porquanto "são da vontade da Natureza"; eles se
valem do pretexto para aumentar ainda a miséria da condição feminina, para
denegar, por exemplo, à mulher, qualquer direito ao prazer sexual, para fazê-la
trabalhar como um animal de carga.
De todos esses
mitos nenhum se acha mais enraizado nos corações masculinos do que o do
"mistério" feminino. Tem numerosas vantagens. E primeiramente permite
explicar sem dificuldades o que parece inexplicável; o homem que não
"compreende" uma mulher sente-se feliz em substituir uma resistência objetiva
a uma insuficiência subjetiva; ao invés de admitir sua ignorância, reconhece a
presença de um mistério fora de si: é um álibi que
lisonjeia a um tempo a preguiça e a vaidade. Um coração apaixonado evita,
assim, muitas decepções; se as condutas da bem-amada são caprichosas, suas
reflexões, estúpidas, o mistério serve de desculpa. Enfim, graças ao mistério,
perpetua-se essa relação negativa que se afigurava a Kierkegaard infinitamente
preferível a uma posse positiva; em face de um enigma vivo, o homem permanece
só: só com seus sonhos, esperanças, temores, amor e vaidade; esse jogo
subjetivo que pode ir do vício ao êxtase místico é para muitos uma experiência mais
atraente do que uma relação autêntica com um ser humano. Em que bases assenta,
pois, uma ilusão tão proveitosa? Seguramente, em certo sentido, a mulher é
misteriosa, "misteriosa como todo mundo", na expressão de
Maeterlinck. Cada um só é sujeito para si; cada um só pode apreender a si
unicamente em sua imanência. Deste ponto de vista, o outro é sempre mistério.
Aos olhos dos homens a opacidade do para-si é mais flagrante no outro feminino;
eles não podem, por nenhum efeito de simpatia, penetrar-lhe a experiência
singular. A qualidade do prazer erótico da mulher, os incômodos da menstruação,
as dores do parto, eles estão condenados a ignorá-los.
Na verdade, há reciprocidade
do mistério; enquanto outro, e outro do sexo masculino, há no coração de todo homem
uma presença fechada sobre si mesma e impenetrável à mulher; ela ignora o que representa
o erotismo do macho. Mas, segundo a regra universal que verificamos, as
categorias através das quais os homens encaram o mundo são constituídas, do ponto de vista deles, como absolutas: eles desconhecem,
nisso como em tudo, a reciprocidade. Mistério para o homem, a mulher é encarada
como mistério em si.
A bem dizer, a
situação dela a predispõe singularmente a ser considerada sob esse aspecto. Seu
destino fisiológico é muito complexo; ela mesma o suporta como uma história
estranha; seu corpo não é para ela uma expressão clara de si mesma; ela sente-se nele alienada; o laço que em todo
indivíduo liga a vida fisiológica à vida física, ou para melhor dizer, a
relação existente entre a facticidade de um indivíduo e a liberdade que a
assume, é o mais difícil enigma implicado pela condição humana: é na mulher que
esse enigma se põe da maneira mais perturbadora. Mas o que se chama mistério
não é a solidão subjetiva da consciência, nem o segredo da vida orgânica. É ao
nível da comunicação que a palavra assume seu sentido verdadeiro: não se reduz
ao puro silêncio, à noite, à ausência; implica uma presença balbuciante que
malogra em se manifestar. Dizer que a mulher é mistério não é dizer que ela se
cala e sim que sua linguagem não é compreendida; ela está presente, mas
escondida sob véus; existe além dessas incertas aparições. Quem é ela? Um anjo,
um demônio, uma inspirada, uma comediante? Ou se supõe que existem para essas
perguntas respostas impossíveis de descobrir, ou antes, que nenhuma é adequada
porque uma ambiguidade fundamental afeta o ser feminino; em seu coração, ela é
para si mesma indefinível: uma esfinge. O fato é que ela se veria bastante
embaraçada em decidir quem ela é; a pergunta não
comporta resposta; mas não porque a verdade recôndita seja demasiado móvel para
se deixar aprisionar: é porque nesse terreno não há verdade. Um existente não é senão o que faz;
o possível não supera o real, a essência não precede a existência: em sua pura
subjetividade o ser humano não é nada.
Medem-no pelos seus atos. De uma camponesa pode-se dizer que se trata de uma
boa ou má trabalhadora, de uma atriz que tem ou não talento; mas se se
considera uma mulher em sua presença imanente, nada absolutamente se pode
dizer, ela está aquém de qualquer qualificação. Ora, nas relações amorosas ou
conjugais, em todas as relações em que a mulher é a vassala, o outro, é em sua
imanência que é apreendida. É impressionante o fato de a companheira, a colega,
a associada não terem mistério; em compensação, se o vassalo é masculino, se
diante de um homem ou de uma mulher mais velhos do que ele, mais ricos, um
rapaz se apresenta como o objeto inessencial, envolve-se ele também de
mistério. E isso nos revela uma infraestrutura do mistério feminino que é de ordem
econômica. Um sentimento também não ê
nada. "No terreno dos sentimentos o real não se distingue do imaginário, diz
Gide. E basta imaginar que se ama para amar, por isso basta dizer que se
imagina amar, quando se ama, para amar um pouco menos..." Entre o
imaginário e o real só há discriminação através das condutas. Detendo o homem
neste mundo uma situação privilegiada, êle é que pode manifestar ativamente seu
amor; muitas vezes sustenta a mulher ou a ajuda, Desposando-a, dá-lhe uma
posição social; dá-lhe presentes; sua independência econômica e social
permite-lhe iniciativas e invenções. Separado de Mme de Villeparisis, o Sr. de
Norpois é quem fazia viagens de vinte e quatro horas para vê-la. Muitas vezes ele
tem ocupações, ela não faz nada; o tempo que passa com Mme de Villeparisis êle
o dá, ela o toma: com
prazer, com paixão, ou simplesmente para se distrair? Aceita ela esses dons por
amor ou por interesse? Ama o marido ou o casamento? Naturalmente as próprias
provas que o homem dá são ambíguas: tal ou qual dom é feito por amor ou por
piedade? Mas, enquanto normalmente a mulher encontra no comércio com o homem
numerosas vantagens, o comércio com a mulher só beneficia o homem na medida em
que ele a ama. Por isso, pelo conjunto de suas atitudes pode-se apreciar mais
ou menos o grau de seu apego; ao passo que a mulher quase não tem meios de
sondar o próprio coração; segundo seu temperamento, terá pontos de vista
diferentes acerca de seus sentimentos, e enquanto os suportar passivamente
nenhuma interpretação será mais verdadeira do que outra. Nos casos bastante
raros em que ela detém os privilégios econômicos e sociais, o mistério
inverte-se: o que demonstra que se liga não a este ou
àquele sexo e sim a uma situação. Para grande número de mulheres os caminhos da
transcendência estão barrados: como não fazem
nada, não se podem fazer ser;
perguntam-se indefinidamente o que poderiam vir
a ser, o que as leva a indagar o que são: é
uma interrogação vã; se o homem malogra em descobrir essa essência secreta é muito
simplesmente porque ela não existe. Mantida à margem do mundo, a mulher não
pode definir-se objetivamente através desse mundo e seu mistério cobre apenas
um vazio. Demais, acontece que, como todos os oprimidos, dissimula
deliberadamente sua figura objetiva; o escravo, o criado, o indígena, todos os
que dependem dos caprichos de um senhor aprenderam a opor-lhe um sorriso
imutável ou uma impassibilidade enigmática; escondem cuidadosamente seus verdadeiros
sentimentos, suas verdadeiras condutas.
À mulher também ensinaram
desde a adolescência a mentir aos homens, a trapacear, a usar de subterfúgios. Chega-se
a eles com máscara: é prudente, hipócrita, comediante. Mas o Mistério feminino
tal qual o reconhece o pensamento mítico é uma realidade mais profunda. Em
verdade, acha-se ele implicado imediatamente
na mitologia do Outro absoluto. Se se admite que a consciência inessencial é,
ela também, uma subjetividade translúcida, capaz de operar o Cogito, admite-se que é,
na verdade, soberana e retorna ao essencial. Para que toda reciprocidade se apresente
como impossível, é preciso que o Outro seja para si um outro, que sua
subjetividade mesma seja afetada pela alteridade. Essa consciência que seria
alienada enquanto consciência, em sua pura presença imanente, seria
evidentemente Mistério; seria Mistério em si pelo fato de que o seria para si;
seria o Mistério absoluto. Assim é que há, para além do segredo que sua
dissimulação cria um mistério do Preto, do Amarelo, enquanto considerados
absolutamente como o Outro inessencial. Deve-se observar que o cidadão
norte-americano, que desnorteia profundamente o europeu médio, não é entretanto
considerado "misterioso": mais modestamente asseguram que não o entendem;
do mesmo modo, a mulher nem sempre "compreende" o homem, mas não há
mistério masculino; é que a América rica e o homem estão do lado do Senhor, e o
Mistério é propriedade do escravo. Bem entendido, não se pode senão sonhar nos
crepúsculos da má-fé acerca da realidade positiva do Mistério; como certas alucinações
marginais, dissipa-se logo que se tenta fixá-lo.
A literatura
malogra sempre ao pintar mulheres "misteriosas". Elas podem somente
surgir no início de um romance como estranhas, enigmáticas; mas, a menos que a
história permaneça inacabada, terminam por revelar seu segredo e são então
personagens coerentes e translúcidos. Por exemplo, o herói dos livros de Peter
Cheney não cessa de se espantar com os imprevisíveis caprichos das mulheres:
nunca se pode adivinhar como vão conduzir-se, fazem abortar todos os cálculos;
na verdade, logo que os motivos de seus atos são desvendados ao leitor, elas se
apresentam como mecanismos muito simples: uma era espiã, outra ladra; por hábil
que seja a intriga, há sempre uma chave e não poderia ser de outro modo, ainda
que o autor tivesse todo o talento e toda a imaginação do mundo. O mistério
nunca passa de uma miragem, dissipa-se quando se tenta apreendê-lo. Vemos assim
que o mito se explica em grande parte pelo uso que dele faz o homem. O mito da
mulher é um luxo. Só pode surgir se o homem escapa à urgente imposição de suas necessidades;
quanto mais as relações são concretamente vividas, menos se idealizam. O felá
do antigo Egito, o camponês beduíno, o artesão da Idade Média, o operário
contemporâneo, têm, nas necessidades do trabalho e da pobreza, relações demasiado
definidas com a mulher singular que é sua companheira para enfeitá-la como uma
aura fasta ou nefasta. São as épocas e as classes a que se concedem os lazeres
do sonho que erguem as estátuas negras ou brancas da feminilidade. Mas o luxo
tem também uma utilidade. Tais sonhos são imperiosamente dirigidos por
interesses. Por certo, em sua maior parte, os mitos têm raízes na atitude
espontânea do homem para com sua própria existência e o mundo que o cerca: mas
a superação da experiência em direção à ideia transcendente foi deliberadamente
operada pela sociedade patriarcal para fins de auto justificação; através dos
mitos, ela impunha aos indivíduos suas leis e costumes de maneira sensível e
por imagens; sob uma forma mítica é que o imperativo coletivo se insinuava em
cada consciência.
Por intermédio das
religiões, das tradições, da linguagem, dos contos, das canções, do cinema, os
mitos penetram até nas existências mais duramente jungidas às realidades
materiais. Todos podem encontrar nesses mitos uma sublimação de suas modestas experiências: enganado por uma mulher amada,
um declara que ela é uma matriz danada; outro, obcecado pela impotência viril, encara
a mulher como a fêmea do louva-a-deus; outro ainda compraz-se em companhia de sua
mulher e ei-la Harmonia, Repouso, Terra nutriz. O gosto a uma eternidade
barata, a um absoluto de bolso, que se depara na maioria dos homens,
satisfaz-se com mito. A menor emoção, uma contrariedade, tomam o reflexo de uma
ideia não temporal; essa ilusão lisonjeia agradàvelmente a vaidade.
O mito é uma
dessas armadilhas da falsa objetividade em que se lança temeràriamente o
espírito de gravidade. Trata-se mais uma vez, de substituir a experiência
vivida e os livres julgamentos que ela reclama por um ídolo imoto. A uma
relação autêntica com um existente autônomo, o mito da Mulher substitui a
contemplação imóvel de uma miragem. "Miragem! Miragem! Ê preciso matá-las
porque não podemos apanhá-las; ou então tranquilizá-las, informá-las,
dissipar-lhe o gosto pelas jóias, fazer delas nossas companheiras iguais,
nossas amigas íntimas, associadas neste mundo, vesti-las de outro modo, cortar-lhes
os cabelos, dizer-lhes tudo...", exclama Laforgue. O homem nada teria a
perder, muito pelo contrário, se renunciasse a fantasiar a mulher de símbolo.
Os sonhos, quando são coletivos e dirigidos, são bem pobres e monótonos ao lado
da realidade viva: para o verdadeiro sonhador, para o poeta, a realidade viva é
uma fonte muito mais fecunda do que um maravilhoso puído. As épocas que mais amaram
as mulheres não foram a do feudalismo cortês nem o galante século XIX: foram as
épocas em que — como no século XVIII — os homens encararam as mulheres como semelhantes;
é então que se apresentam como verdadeiramente romanescas: basta ler Les Liaisons dangereuses, Le Rouge et le Noir, Adeus às Armas,
para percebê-lo. As heroínas de Laclos, Stendhal, Hemingway não têm mistério;
nem por isso são menos atraentes. Reconhecer um ser humano na mulher não é
empobrecer a experiência do homem: esta nada perderia de sua diversidade, de
sua riqueza, de sua intensidade, se se assumisse em sua intersubjetividade;
recusar os mitos não é destruir toda relação dramática entre os sexos, não é
negar as significações que se revelam autenticamente ao homem através da realidade
feminina; não é suprimir a poesia, o amor, a aventura, a felicidade, o sonho: é
somente pedir que as condutas, os sentimentos, as paixões assentem na verdade.
"A mulher se perde. Onde estão as mulheres? As mulheres de hoje não são
mulheres", viu-se qual o sentido desses slogans misteriosos.
Aos olhos dos homens — e da legião de mulheres que veem por esses olhos — não
basta ter um corpo de mulher, nem assumir como amante, como mãe, a função de
fêmea para ser "uma mulher de verdade"; através da sexualidade e da
maternidade, o sujeito pode reivindicar sua autonomia; "a verdadeira
mulher" é a que se aceita como Outro. Há na atitude dos homens de hoje uma
duplicidade que cria na mulher um dilaceramento doloroso; eles aceitam em
grande medida que a mulher seja um semelhante, uma igual; e, no entanto,
continuam a exigir que ela permaneça o inessencial; para ela, esses dois
destinos não são conciliáveis; ela hesita entre um e outro sem se adaptar exatamente
a nenhum e daí sua falta de equilíbrio.
No homem não há
nenhum hiato entre a vida pública e a vida privada: quanto mais êle se afirma
seu domínio do mundo pela ação e pelo trabalho, mais revela viril; nele, os
valores humanos e os valores vitais se confundem; ao passo que os êxitos
autônomos da mulher estão em contradição com sua feminilidade, porquanto se
exige da "verdadeira mulher" que se torne objeto, que seja o Outro. É
muito possível que, neste ponto, a sensibilidade e até a sexualidade do homem
se modifiquem. Uma nova estética já nasceu. Se a moda dos bustos chatos e das
ancas magras — da mulher-efebo — durou pouco, não se voltou contudo ao ideal opulento
dos séculos passados. Pede-se ao corpo feminino que seja carne, mas
discretamente; deve ser esbelto e não empapado de banha; com músculos, flexível
e robusto é preciso que indique a transcendência; preferem-no, não branco como
uma planta de estufa, mas tendo enfrentado o sol universal, tostado como um
torso de trabalhador. Tornando-se prático, o vestido da mulher não a fez
parecer assexuada: ao contrário, as saias curtas valorizaram mais do que
outrora as pernas e as coxas. Não se compreende por que o trabalho a privaria
de sua atração erótica. Possuir a mulher ao mesmo tempo como personagem social
e como presa carnal pode ser perturbador: em uma séria de desenhos de Peynet
publicados recentemente, via-se um jovem noivo abandonar a noiva porque era
seduzido pela bonita prefeita que se dispunha a celebrar o casamento. O fato de
uma mulher exercer um "ofício viril" e ser ao mesmo tempo desejável foi
durante muito tempo um tema de piadas mais ou menos livres. Pouco a pouco, o
escândalo e a ironia se embotaram e parece que nova forma de erotismo está
nascendo: talvez venha a engendrar novos mitos.
O que é certo é
que hoje é muito difícil às mulheres assumirem concomitantemente sua condição
de indivíduo autônomo e seu destino feminino; aí está a fonte dessas inépcias,
dessas incompreensões que as levam, por vezes, a se considerar como um
"sexo perdido". E, sem dúvida, é mais confortável suportar uma
escravidão cega que trabalhar para se libertar: os mortos também estão mais bem
adaptados à terra do que os vivos.
Como quer que
seja, uma volta ao passado não é mais possível nem desejável. O que se deve
esperar é que, por seu lado, os homens assumam sem reserva a situação que se
vem criando; somente então a mulher poderá viver sem tragédia. Então poderá ver-se
realizado o voto de Laforgue: "Ó moças, quando sereis nossos irmãos,
nossos irmãos íntimos sem segunda intenção de exploração? Quando nos daremos o
verdadeiro aperto de mãos?" Então "Mélusine não mais sob o peso da
fatalidade desencadeada sobre ela pelo homem só, Mélusine libertada..."
reencontrará seu "equilíbrio humano". Então ela será plenamente um
ser humano "quando se quebrar a escravidão infinita da mulher, quando ela
viver por ela e para ela, o homem — até hoje abominável — tendo-lhe dado a
alforria".
O SEGUNDO SEXO – O
livro O segundo sexo: fatos e mitos,
da escritora, filósofa existencialista e feminista francesa Simone
Lucie-Ernestine-Marie Bertrand de Beauvoir, mais conhecida como Simone de
Beauvoir (1908-1986), alcançou repercussão internacional e marcou toda uma
geração interessada, como ela, na abolição do mito do éternel feminin. Tendo sofrido e vencido pela inteligência as
limitações seculares imposta à mulher, expõe nessa obra suas reivindicações e
denuncias, de modo que fica demonstrada sua forma lucidamente didática que
contribuiu de forma decisiva para a expansão da consciência feminina na segunda
metade do séc. XX. O livro trata de temos como os dados biológicos a visão
psicanalítica, o ponto de vista do materialismo histórico, Montherlant ou o
pão do nojo, D. H. Lawrence ou o orgulho fálico, Claudel e a serva do Senhor, Breton
ou a poesia e Stendhal ou o romanesco do verdadeiro.
REFERÊNCIA
BEAUVOIR,
Simone. O segundo sexo: fatos e mitos. São Paulo: Difusão Europeia do Livro,
1970.