[...] A
vida, tal como a encontramos, é árdua demais para nós; proporciona-nos muitos
sofrimentos, decepções e tarefas impossíveis. A fim de suportá-la, não podemos
dispensar as medidas paliativas. ‘Não podemos passar sem construções
auxiliares’, diz-nos Theodor Fontane. Existem talvez três medidas desse tipo:
derivativos poderosos, que nos fazem extrair luz de nossa desgraça; satisfações
substitutivas, que a diminuem; e substâncias tóxicas, que nos tornam
insensíveis a ela. Algo desse tipo é indispensável. Voltaire tinha os
derivativos em mente quando terminou Candide
com o conselho para cultivarmos nosso próprio jardim, e a atividade científica
constitui também um derivativo dessa espécie. As satisfações substitutivas, tal
como as oferecidas pela arte, são ilusões, em contraste com a realidade; nem
por isso, contudo, se revelam menos eficazes psiquicamente, graças ao papel que
a fantasia assumiu na vida mental. As substâncias tóxicas influenciam nosso
corpo e alteram a sua química. Não é simples perceber onde a religião encontra
o seu lugar nessa série. Temos de pesquisar mais adiante.
[...] Esforçam-se para obter felicidade; querem ser
felizes e assim permanecer. Essa empresa apresenta dois aspectos: uma meta
positiva e uma meta negativa. Por um lado, visa a uma ausência de sofrimento e
de desprazer; por outro, à experiência de intensos sentimentos de prazer. Em
seu sentido mais restrito, a palavra ‘felicidade’ só se relaciona a esses
últimos. Em conformidade a essa dicotomia de objetivos, a atividade do homem se
desenvolve em duas direções, segundo busque realizar - de modo geral ou mesmo
exclusivamente - um ou outro desses objetivos.
[...] A
religião restringe esse jogo de escolha e adaptação, desde que impõe igualmente
a todos o seu próprio caminho para a aquisição da felicidade e da proteção
contra o sofrimento. Sua técnica consiste em depreciar o valor da vida e
deformar o quadro do mundo real de maneira delirante - maneira que pressupõe
uma intimidação da inteligência. A esse preço, por fixá-las à força num estado
de infantilismo psicológico e por arrastá-las a um delírio de massa, a religião
consegue poupar a muitas pessoas uma neurose individual. Dificilmente, porém,
algo mais. Existem, como dissemos, muitos caminhos que podem levar à felicidade passível de ser atingida pelos homens,
mas nenhum que o faça com toda segurança. Mesmo a religião não consegue manter
sua promessa. Se, finalmente, o crente se vê obrigado a falar dos ‘desígnios
inescrutáveis’ de Deus, está admitindo que tudo que lhe sobrou, como último
consolo e fonte de prazer possíveis em seu sofrimento, foi uma submissão
incondicional. E, se está preparado para isso, provavelmente poderia ter-se
poupado o détour que efetuou.
[...] A
vida humana em comum só se torna possível quando se reúne uma maioria mais
forte do que qualquer indivíduo isolado e que permanece unida contra todos os
indivíduos isolados. O poder dessa comunidade é então estabelecido como
‘direito’, em oposição ao poder do indivíduo, condenado como ‘força bruta’. A
substituição do poder do indivíduo pelo poder de uma comunidade constitui o
passo decisivo da civilização.
[...] A
civilização atual deixa claro que só permite os relacionamentos sexuais na base
de um vínculo único e indissolúvel entre um só homem e uma só mulher, e que não
é de seu agrado a sexualidade como fonte de prazer por si própria, só se
achando preparada para tolerá-la porque, até o presente, para ela não existe
substituto como meio de propagação da raça humana.
[...] o
comportamento dos seres humanos apresenta diferenças que a ética, desprezando o
fato de que tais diferenças são determinadas, classifica como ‘boas’ ou ‘más’.
Enquanto essas inegáveis diferenças não forem removidas, a obediência às
elevadas exigências éticas acarreta prejuízos aos objetivos da civilização, por
incentivar o ser mau. Não podemos deixar de lembrar um incidente ocorrido na
câmara dos deputados francesa, quando a pena capital estava em debate. Um dos
membros acabara de defender apaixonadamente a abolição dela e seu discurso
estava sendo recebido com tumultuosos aplausos, quando uma voz vinda do
plenário exclamou: ‘Que messieurs les assassins commencent! O elemento de verdade por trás disso tudo, elemento
que as pessoas estão tão dispostas a repudiar, é que os homens não são
criaturas gentis que desejam ser amadas e que, no máximo, podem defender-se
quando atacadas; pelo contrário, são criaturas entre cujos dotes instintivos
deve-se levar em conta uma poderosa quota de agressividade. Em resultado disso,
o seu próximo é, para eles, não apenas um ajudante potencial ou um objeto
sexual, mas também alguém que os tenta a satisfazer sobre ele a sua
agressividade, a explorar sua capacidade de trabalho sem compensação,
utilizá-lo sexualmente sem o seu consentimento, apoderar-se de suas posses,
humilhá-lo, causar-lhe sofrimento, torturá-lo e matá-lo. - Homo homini lupus.
[...] O interesse
pelo trabalho em comum não a manteria unida; as paixões instintivas são mais
fortes que os interesses razoáveis. A civilização tem de utilizar esforços
supremos a fim de estabelecer limites para os instintos agressivos do homem e
manter suas manifestações sob controle por formações psíquicas reativas. Daí,
portanto, o emprego de métodos destinados a incitar as pessoas a identificações
e relacionamentos amorosos inibidos em sua finalidade, daí a restrição à vida
sexual e daí, também, o mandamento ideal de amar ao próximo como a si mesmo,
mandamento que é realmente justificado pelo fato de nada mais ir tão fortemente
contra a natureza original do homem. A despeito de todos os esforços, esses
empenhos da civilização até hoje não conseguiram muito. Espera-se impedir os
excessos mais grosseiros da violência brutal por si mesma, supondo-se o direito
de usar a violência contra os criminosos; no entanto, a lei não é capaz de
deitar a mão sobre as manifestações mais cautelosas e refinadas da
agressividade humana. Chega a hora em que cada um de nós tem de abandonar, como
sendo ilusões, as esperanças que, na juventude, depositou em seus semelhantes,
e aprende quanta dificuldade e sofrimento foram acrescentados à sua vida pela
má vontade deles. Ao mesmo tempo, seria injusto censurar a civilização por
tentar eliminar da atividade humana a luta e a competição. Elas são
indubitavelmente indispensáveis. Mas oposição não é necessariamente inimizade;
simplesmente, ela é mal empregada e tornada uma ocasião para a inimizade.
[...] Essas inter-relações são tão complicadas e, ao
mesmo tempo, tão importantes, que, ao risco de me repetir, as abordarei ainda
de outro ângulo. A seqüência cronológica, então, seria a seguinte. Em primeiro
lugar, vem a renúncia ao instinto, devido ao medo de agressão por parte da
autoridade externa. (É a isso,
naturalmente, que o medo da perda de amor equivale, pois o amor constitui
proteção contra essa agressão punitiva.) Depois, vem a organização de uma
autoridade interna e a renúncia
ao instinto devido ao medo dela, ou seja, devido ao medo da consciência. Nessa
segunda situação, as más intenções são igualadas às más ações e daí surgem
sentimento de culpa e necessidade de punição. A agressividade da consciência
continua a agressividade da autoridade. Até aqui, sem dúvida, as coisas são
claras; mas onde é que isso deixa lugar para a influência reforçadora do
infortúnio (da renúncia imposta de fora), e para a extraordinária severidade da consciência nas pessoas melhores
e mais dóceis?Já explicamos essas particularidades
da consciência, mas provavelmente ainda temos a impressão de que essas explicações
não atingem o fundo da questão e deixam ainda inexplicado um resíduo. Aqui, por
fim, surge uma idéia que pertence inteiramente à psicanálise, sendo estranha ao
modo comum de pensar das pessoas. Essa idéia é de um tipo que nos capacita a
compreender por que o tema geral estava fadado a nos parecer confuso e obscuro,
pois nos diz que, de início, a consciência (ou, de modo mais correto, a
ansiedade que depois se torna consciência) é, na verdade, a causa da renúncia
instintiva, mas que, posteriormente, o relacionamento se inverte. Toda renúncia
ao instinto torna-se agora uma fonte dinâmica de consciência, e cada nova
renúncia aumenta a severidade e a intolerância desta última. Se pudéssemos
colocar isso mais em harmonia com o que já sabemos sobre a história da origem
da consciência, ficaríamos tentados a defender a afirmativa paradoxal de que a
consciência é o resultado da renúncia instintiva, ou que a renúncia instintiva
(imposta a nós de fora) cria a consciência, a qual, então, exige mais renúncias
instintivas.
[...] A
repetição da mesma fórmula se justifica pela consideração de que tanto o
processo da civilização humana quanto o do desenvolvimento do indivíduo são
também processos vitais - o que equivale a dizer que devem partilhar a mesma
característica mais geral da vida. Por outro lado, as provas da presença dessa
característica geral, pela razão mesma de sua natureza geral, fracassam em nos
ajudar a estabelecer qualquer diferenciação [entre os processos], enquanto não
for reduzida por limitações especiais. Só podemos ficar satisfeitos, portanto,
afirmando que o processo civilizatório constitui uma modificação, que o
processo vital experimenta sob a influência de uma tarefa que lhe é atribuída
por Eros e incentivada por Ananké - pelas exigências da realidade -, e que essa
tarefa é a de unir indivíduos isolados numa comunidade ligada por vínculos
libidinais. Quando, porém, examinamos a relação existente entre o processo
desenvolvimental ou educativo dos seres humanos individuais, devemos concluir,
sem muita hesitação, que os dois apresentam uma natureza muito semelhante, caso
não sejam o mesmo processo aplicado a tipos diferentes de objeto. O processo da
civilização da espécie humana é, naturalmente, uma abstração de ordem mais
elevada do que a do desenvolvimento do indivíduo, sendo, portanto, de mais
difícil apreensão em termos concretos; tampouco devemos perseguir as analogias
a um extremo obsessivo. Contudo, diante da semelhança entre os objetivos dos
dois processos - num dos casos, a integração de um indivíduo isolado num grupo
humano; no outro, a criação de um grupo unificado a partir de muitos indivíduos
-, não podemos surpreender-nos com a similaridade entre os meios empregados e
os fenômenos resultantes. Em vista de
sua excepcional importância, não devemos adiar mais a menção de determinado
aspecto que estabelece a distinção entre os dois processos. No processo de
desenvolvimento do indivíduo, o programa do princípio do prazer, que consiste
em encontrar a satisfação da felicidade, é mantido como objetivo principal. A
integração numa comunidade humana,ou a adaptação a ela, aparece como uma
condição dificilmente evitável, que tem de ser preenchida antes que esse
objetivo de felicidade possa ser alcançado. Talvez fosse preferível que isso
pudesse ser feito sem essa condição. Em outras palavras, o desenvolvimento do
indivíduo nos parece ser um produto da interação entre duas premências, a
premência no sentido da felicidade, que geralmente chamamos de ‘egoísta’, e a
premência no sentido da união com os outros da comunidade, que chamamos de
‘altruísta’. Nenhuma dessas descrições desce muito abaixo da superfície. No
processo de desenvolvimento individual, como dissemos, a ênfase principal recai
sobretudo na premência egoísta (ou a premência no sentido da felicidade), ao
passo que a outra premência, que pode ser descrita como ‘cultural’, geralmente
se contenta com a função de impor restrições. No processo civilizatório, porém,
as coisas se passam de modo diferente. Aqui, de longe, o que mais importa é o
objetivo de criar uma unidade a partir dos seres humanos individuais. É verdade
que o objetivo da felicidade ainda se encontra aí, mas relegado ao segundo
plano. Quase parece que a criação de uma grande comunidade humana seria mais
bem-sucedida se não se tivesse de prestar atenção à felicidade do indivíduo.
Assim, pode-se esperar que o processo desenvolvimental do indivíduo apresente
aspectos especiais, próprios dele, que não são reproduzidos no processo da
civilização humana. É apenas na medida em que está em união com a comunidade
como objetivo seu, que o primeiro desses processos precisa coincidir com o
segundo. Assim como um
planeta gira em torno de um corpo central enquanto roda em torno de seu próprio
eixo, assim também o indivíduo humano participa do curso do desenvolvimento da
humanidade, ao mesmo tempo que persegue o seu próprio caminho na vida. Para
nossos olhos enevoados, porém, o jogo de forças nos céus parece fixado numa
ordem que jamais muda; no campo da vida orgânica, ainda podemos perceber como
as forças lutam umas com as outras e como os efeitos desse conflito estão em
permanente mudança. Assim também as duas premências, a que se volta para a
felicidade pessoal e a que se dirige para a união com os outros seres humanos,
devem lutar entre si em todo indivíduo, e assim também os dois processos de
desenvolvimento, o individual e o cultural, têm de colocar-se numa oposição
hostil um para com o outro e disputar-se mutuamente a posse do terreno.
Contudo, essa luta entre o indivíduo e a sociedade não constitui um derivado da
contradição - provavelmente irreconciliável - entre os instintos primevos de
Eros e da morte. Trata-se de uma luta dentro da economia da libido, comparável
àquela referente à distribuição da libido entre o ego e os objetos, admitindo
uma acomodação final no indivíduo, tal como, pode-se esperar, também o fará no
futuro da civilização, por mais que atualmente essa civilização possa oprimir a
vida do indivíduo.
[...] A questão fatídica para a espécie humana parece-me
ser saber se, e até que ponto, seu desenvolvimento cultural conseguirá dominar
a perturbação de sua vida comunal causada pelo instinto humano de agressão e
autodestruição. Talvez, precisamente com relação a isso, a época atual mereça
um interesse especial. Os homens adquiriram sobre as forças da natureza um tal
controle, que, com sua ajuda, não teriam dificuldades em se exterminarem uns
aos outros, até o último homem. Sabem disso, e é daí
que provém grande parte de sua atual inquietação, de sua infelicidade e de sua
ansiedade. Agora só nos resta esperar que o outro dos dois ‘Poderes Celestes’,
o eterno Eros, desdobre suas forças para se afirmar na luta com seu não menos
imortal adversário. Mas quem pode prever com que sucesso e com que resultado?
O MAL-ESTAR NA CIVILIZAÇÃO – O livro O mal-estar na civilização, de Sigmund
Freud, aborda temas como religião, o propósito da vida, derivativos poderosos,
satisfações substitutas e substâncias tóxicas, princípio do prazer e da
realidade, a felicidade da quietude e o isolamento voluntário, os amortecedores
de preocupações, deslocamentos da libido, aniquilamento dos instintos, a
técnica da arte de viver, a vitória do cristianismo, as viagens de
descobrimento, o conhecimento das neuroses, a felicidade, o deus de prótese,
exigências da civilização, Eros e Ananke, amor e a civilização e a sexualidade,
a agressividade, o comunismo, o narcisismo, a pobreza psicológica, a teoria dos
instintos, instintos objetais, neuroses de transferência, instintos de vida e
de morte, sadismo, o sentimento de culpa, a punição e o remorso.
REFERÊNCIA
FREUD, Sigmund. O mal-estar na civilização.
São Paulo: Abril Cultural, 1978.
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