[...] Os quatro discursos de que falei há pouco são
essenciais para identificar aquilo de que, façam o que fizerem, vocês, de algum
modo, são sempre os sujeitos, ou seja, supostos
no que se passa de um significante a outro. O significante, é ele o
senhor do jogo, e vocês não são mais do que o suposto, em relação a alguma
coisa que é outra, para não dizer o Outro. Vocês não lhe dão sentido, nem
sequer têm o suficiente para vocês próprios. Mas lhe dão um corpo, a esse
significante que os representa, o significante-mestre. Pois bem, sendo vocês
ali dentro, literalmente, sombras de sombra, não imaginem que a substância, que
é o sonho de sempre lhes atribuir, seja outra coisa senão esse gozo de que
vocês são cortados. Como não ver o que há de semelhante nessa invocação
substancial e nesse incrível mito do gozo sexual, do qual o próprio Freud se
fez reflexo? O gozo sexual é realmente esse objeto que corre, corre, como no
jogo do anel, mas cujo estatuto ninguém é capaz de enunciar, a não ser como
estatuto supremo. É o auge de uma curva à qual ele dá o seu sentido, e também,
muito precisamente, da qual o auge escapa. E é por poder articular o leque dos
gozos sexuais que a psicanálise dá seu passo decisivo. O que ela demonstra é,
justamente, que o gozo que se poderia chamar de sexual, que não seria semblante
do sexual, é marcado pelo índice, nada mais, até nova ordem, daquilo que só se
enuncia, daquilo que só se anuncia pelo índice da castração.
[...]
Esta noite eu lhes comuniquei
algumas reflexões e, é claro, são reflexões a que a minha pessoa, como tal, não
pode estar alheia. Isso é o que mais detesto nos outros. Porque, afinal, entre
as pessoas que me escutam de vez em quando, e que por isso, Deus sabe por quê,
são chamadas de meus alunos, não se pode dizer que elas se privem de se refletir. A parede \le mur\ sempre pode servir de espelho [muroir]. Foi por isso, sem dúvida, que vim contar coisas no
Sainte-Anne. Não é para delirar, propriamente falando, mas destas paredes, de
qualquer modo, guardei alguma coisa no coração. Se, com o tempo, eu tiver
conseguido edificar, com meu S barrado, meu S1, S2 e o objeto a, a razão \réson\ de ser, como quer que vocês a
escrevam, pode ser que, no final das contas, vocês não tomem o reflexo da minha
voz nestas paredes por uma simples reflexão pessoal.
ESTOU FALANDO COM AS PAREDES – O livro Estou falando com as paredes: conversas na capela de Saint-Anne, de
Jacques Lacan, traz na primeira parte Saber,
ignorância, verdade e gozo assuntos como a ignorância douta de Nicolau de
Cuza, a psiquiatria, a psiquiatreria e a antipsiquiatria, Georges Bataille e o
não saber, ignorância cassa, alingua, a psicanálise e a linguagem, resistência e
o erro de Freud, Copérnico, o geocentrismo e o heliocentrismo, Freud e Darwin:
sabemos que sabemos, o inconsciente estrutura-se como uma linguagem, função e
campo da fala e da linguagem, o gozo e o princípio do prazer, a relação de Kant
com Sade nos Escritos, a gama do gozo e o falo em Freud, racismo, trabalho,
poder simbólico, o Iluminismo e o saber da impotência. Na segunda parte, Da incompreensão e outros temas, trata
de significante e significado, o signo, sintoma e valor de verdade, sujeito
suposto saber e transferência, Bertrand Russel, matemas, Leibniz e Newton,
campo magnético, função e campo da fala e da linguagem, gozo sexual, castração,
os seres acósicos, Hegel, o tetraedro, Henry Ey e a ciência e a verdade. Na
terceira parte, Estou falando com as
paredes, aborda sobre o princípio da seriedade, o saber do psicanalista,
Platão e o valor da díade, a caverna, a psicanálise e a lógica, Mar, o homem e
a mulher, entre outros assuntos.
REFERÊNCIA
LACAN, Jacques. Estou falando com as paredes:
conversas na capela de Saint-Anne. Rio de Janeiro: Zahar, 2011.