[...] o trabalho dos filósofos nos deixara supor que o
pensamento é um ato transparente a si mesmo, que um pensamento que sabe pensar-se
é o critério derradeiro, a essência de todo pensamento. Tudo que julgamos dever
nos purificar, nos depurar, para isolar o processo do pensamento, isto é, nossas
paixões, nossos desejos, nossas angústias, até mesmo nossas cólicas, nossos
medos, nossas loucuras, tudo isso parecia ser testemunha exclusiva em nós da
intrusão do que Descartes chama de corpo, pois, na ponta dessa depuração do
pensamento, há o seguinte, nunca podemos perceber por nenhuma ponta que o
pensamento seja divisível. Tudo viria do distúrbio introduzido por paixões no
funcionamento dos órgãos. Este é o ponto aonde chegamos ao termo de uma
tradição filosófica. Muito ao contrário, Freud, ao nos fazer retroceder, nos
diz que é no nível de nossas relações com o pensamento que convém buscar o móbil
de toda uma parte, singularmente expandida, parece, em nosso contexto de
civilização, de governar pela prevalência, pela expansão do pensamento de certa
forma encarnada nos braintrusts, como
se diz. O pensamento é desde sempre encarnado, e isso também é perceptível para
nós, no que nos parece o mais caduco, o mais dejeto, o mais inassimilável, no
nível de certas falhas, que, aparentemente, parecem dever à função do déficit. Em
outros termos, isso pensa em um nível em que isso não se entende absolutamente
como pensamento.
[...] Qualquer um que se dê ao trabalho de tentar chegar ao nível que essa
mensagem alcança certamente despertará o interesse - a prova está dada, nem que
seja pela coletânea de escórias que são meus próprios Escritos -, despertará singularmente o interesse das pessoas
mais diversas, mais dispersas, mais estranhamente situadas, e, para resumir, de
qualquer um.
[...] O esforço do meu ensino até aqui não consiste em valorizar Freud no
nível da grande imprensa. Não haveria motivo para isso, e na verdade não vejo
por que eu próprio me teria imposto essa preocupação e esse esforço caso ele
não se dirigisse aos psicanalistas. O que lhes forneço é isto, em sua
formulação mais vasta. Preciso efetivamente considerar que o pensamento existe
no nível mais radical e já condiciona pelo menos uma parte imensa do que conhecemos
como animal humano. O que é o pensamento? A resposta não jaz no nível em que se
considera que sua essência é ser transparente a si mesmo e se saber pensado.
Está no nível do fato de que todo ser humano ao nascer banha-se em alguma coisa
que chamamos de pensamento' mas da qual um exame mais profundo demonstra com
evidência, e isto desde os primeiros trabalhos de Freud, que é completamente impossível
apreender aquilo de que se trata a não ser se apoiando sobre seu material, constituído
pela linguagem em todo seu mistério.
[...] O psicanalista deve ser capaz, no nível de sua prática, de se
presentificar a todo instante como aquele que sabe qual é sua dependência
própria de um certo número de coisas que, a princípio, ele deve observar
claramente em sua experiência inaugural, por exemplo sua dependência em relação
a determinada fantasia. Isto, a princípio, está perfeitamente ao seu alcance. Ele
não deve considerar que sabe, sob o pretexto de que é a título do que chamei de
sujeito suposto saber que se vai descobri-lo. Ele não é consultado sobre o que
está à margem de um saber qualquer, seja aquele do sujeito ou o saber comum [...] Por que ele não quer saber -
a não ser porque isto é alguma coisa que o põe em questão como sujeito do
saber? Isso vale no nível da criatura mais simples, e, digamos, menos
informada. Que o psicanalista não julgue poder introduzir-se em uma questão
dessas ao simplesmente aceitar o que lhe foi deferido como papel na forma do
sujeito suposto saber. Ele sabe muito bem que não sabe, e que tudo que poderá
forjar como saber próprio arrisca-se a se constituir como se ele fizesse uma defesa
contra sua própria verdade. Tudo o que ele construirá como psicologia do obsessivo,
tudo o que ele encarnará em tal tendência dita primitiva, não impedirá que, à medida que a relação chamada transferência
for levada mais longe, ele seja questionado sobre o modo fundamental que é o da
neurose, enquanto este comporta o jogo escorregadio da demanda e do desejo.
[...] Como é ridícula a voracidade com que alguns que escutam o que ensino há
tantos anos já se precipitam sobre minhas formulações para delas fazer
artiguetes, ninguém pensa em outra coisa a não ser nisso, em se enfeitar com
minhas plumas, e tudo isso para se atribuir o mérito de ter feito um artigo que
se sustenta de pé. Nada é mais contrário ao que se trataria de obter deles, ou
seja, que conquistassem a justa situação de desejosa de "desmuniciamento"
eu diria, que é a do analista enquanto um homem entre outros, que deve saber 1ue
não é nem saber nem consciência, mas dependente tanto do desejo do Outro quanto
de sua fala. Enquanto não houver analista que me tenha escutado o suficiente
para chegar a esse ponto, tampouco haverá o que isso logo engendraria, a saber,
esses passos essenciais que ainda esperamos na análise, e que, redobrando os
passos de Freud, fariam-na avançar novamente.
MEU ENSINO – A obra Meu
ensino, de Jacques Lacan, traz na primeira parte Lugar, origem e fim do meu ensino temas abordados como no meio não
é a origem: é meu lugar, psicanálise e sexualidade, automatismo mental,
Heidegger: o homem habita a linguagem, Freud e a psicopatologia da vida
cotidiana, as leis da superestrutura de Saussure, é porque há linguagem que há
verdade, Piaget e Vigotski, a função do sujeito na linguagem, a lógica do
desejo, o neurótico e o religioso, o complexo de castração e a teoria da
psicanálise didática. Na segunda parte, Meu
ensino, sua natureza e seu fim, aborda a respeito dos Escritos, a evacuação
da merda, Aldous Huxley e Adônis e o analfabeto, o sistema de esgoto e a
cultura, o estruturalismo, a experiência psicanalítica, Aristóteles e os
sofistas, a lógica e o sujeito. Na terceira parte, Então, vocês terão escutado Lacan, trata sobre Descartes, Freud,
Psicanálise, o pensamento e a descoberta do inconsciente.
REFERÊNCIA
LACAN, Jacques. Meu ensino. Rio de Janeiro:
Zahar, 2006.
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