[...] os histéricos sofrem de
reminiscências. Seus sintomas são
resíduos e símbolos mnêmicos de experiências especiais (traumáticas). [...]
os histéricos e neuróticos: não só
recordam acontecimentos dolorosos que se deram há muito tempo, corno ainda se
prendem a eles emocionalmente; não se desembaraçam do passado e alheiam-se por
isso da realidade e do presente.
[...]
Tinha-se de admitir que a doença se instalava
porque a emoção desenvolvida nas situações patogênicas não podia ter
exteriorização normal; e que a essência da moléstia consistia na atual
utilização anormal das emoções "enlatadas". Em parte ficavam estas
como carga contínua da vida psíquica e fonte permanente de excitação para a
mesma; em parte se desviavam para insólitas inervações e inibições somáticas,
que se apresentavam como os sintomas físicos do caso. Para este último
mecanismo propusemos o nome de "conversão histérica". Demais, uma
certa parte de nossas excitações psíquicas é conduzida normalmente para a
inervação somática, constituindo aquilo que conhecemos por "expressão das
emoções". A conversão histérica exagera então essa parte da descarga de um
processo mental catexizado emocionalmente; ela representa uma expressão mais
intensa das emoções, conduzida por nova via. [...] a histeria é uma forma de alteração
degenerativa do sistema nervoso, que se manifesta pela fraqueza congênita do
poder de síntese psíquica.
[...]
Nesta ideia de resistência alicercei então minha
concepção acerca dos processos psíquicos na histeria. Para o restabelecimento
do doente mostrou-se indispensável suprimir estas resistências. Partindo do
mecanismo da cura, podia-se formar idéia muito precisa da gênese da doença. As
mesmas forças que hoje, como resistência, se opõem a que o esquecido volte à
consciência deveriam ser as que antes tinham agido, expulsando da consciência
os acidentes patogênicos correspondentes. A esse processo, por mim formulado,
dei o nome de repressão e
julguei-o demonstrado pela presença inegável da resistência.
[...] A aceitação do impulso desejoso incompatível ou o prolongamento do
conflito teriam despertado intenso desprazer; a repressão evitava o desprazer,
revelando-se desse modo um meio de proteção da personalidade psíquica.
[...] Mas o impulso desejoso
continua a existir no inconsciente à espreita de oportunidade para se
revelar, concebe a formação de um substituto
do reprimido, disfarçado e irreconhecível, para lançar à consciência,
substituto ao qual logo se liga a mesma sensação de desprazer que se julgava
evitada pela repressão. Esta substituição da ideia reprimida — o sintoma — é protegida contra as
forças defensivas do ego e em lugar do breve conflito, começa então um
sofrimento interminável. No sintoma, a par dos sinais do disfarce, podem
reconhecer-se traços de semelhança com a idéia primitivamente reprimida. Pelo
tratamento psicanalítico desvenda-se o trajeto ao longo do qual se realizou a
substituição, e para a recuperação é necessário que o sintoma seja reconduzido
pelo mesmo caminho até a ideia reprimida. [...] Ou a personalidade do doente se convence de que repelira sem razão o
desejo e consente em aceitá-lo total ou parcialmente, ou este mesmo desejo é
dirigido para um alvo irrepreensível e mais elevado (o que se chama
"sublimação" do desejo), ou, finalmente, reconhece como justa a
repulsa. Nesta última hipótese o mecanismo da repressão, automático por isso
mesmo insuficiente, é substituído por um julgamento de condenação com a ajuda
das mais altas funções mentais do homem — o controle consciente do desejo é
atingido.
[...] Duas forças antagônicas atuavam no doente; de um lado, o esforço
refletido para trazer à consciência o que jazia deslembrado no inconsciente; de
outro lado a resistência, já nossa conhecida, impedindo a passagem para o
consciente do elemento reprimido ou dos derivados deste. [...] O pensamento devia comportar-se em relação
ao elemento reprimido com uma alusão,
como uma representação do mesmo por meio de palavras indiretas. Conhecemos, no
domínio da vida psíquica normal, exemplos em que situações análogas às que
admitimos produzem resultados semelhantes. É o caso do chiste. O problema da
técnica psicanalítica forçou-me a estudar o mecanismo da formação das
pilhérias. Quero expor-lhes apenas um desses exemplos, aliás uma anedota da
língua inglesa. Diz a anedota:16 Por uma série de empresas
duvidosas, dois comerciantes tinham conseguido reunir grandes cabedais e
esforçavam-se para penetrar na boa sociedade. Entre outros, pareceu-lhes um
meio conveniente fazerem-se retratar pelo pintor mais notável e mais careiro da
cidade, cujo quadro fosse um acontecimento. Numa grande reunião foram
inaugurados os custosíssimos quadros, um ao lado do outro, e os dois
proprietários conduziram até a parede o mais influente crítico de arte a fim de
obterem o valioso julgamento. O crítico examinou longamente o quadro, sacudiu a
cabeça como se achasse falta de alguma coisa e perguntou apenas, indicando o
espaço entre os dois quadros: "But
where’s the Saviour?"17 (Mas onde está o Redentor?) Vejo
que todos se riem da boa pilhéria; penetramo-lhes agora a significação. Os
presentes compreendem que o crítico queria dizer: vocês são dois patifes como
aqueles que ladearam o Cristo crucificado. Mas não o disse; em lugar disso
exprimiu coisa que à primeira vista parece extraordinariamente abstrusa e fora
de propósito, mas que logo depois reconhecemos como uma alusão à injúria que
lhe estava no íntimo, e que vale perfeitamente como substituto dela. Não
podemos esperar que numa anedota sejam encontradas todas as circunstâncias que
pressupomos na gênese das idéias associadas dos nossos doentes; queremos
todavia realçar a identidade de motivação
para a anedota e para a ideia. Por que é que o nosso crítico não lhes falou
claramente? Porque nele outras razões contrárias também atuavam ao lado do
ímpeto de dizê-lo francamente, face a face. Não deixa de ser perigoso
desfeitear pessoas de que somos hóspedes e que dispõem de criadagem numerosa,
de pulsos vigorosos. A sorte poderia ser a mesma que na conferência anterior
serviu de exemplo para a repressão. Por tal razão o crítico atirou
indiretamente a ofensa que estava ruminando, transfigurando-a numa "alusão
com desabafo". É, a nosso ver, devido à mesma constelação que o paciente
produz uma ideia de substituição, mais ou menos distorcida, em lugar do
elemento esquecido que procuramos.
[...] O modo de proceder dos doentes em nada facilita o reconhecimento da
justeza da tese a que estamos aludindo. Em vez de nos fornecerem prontamente
informações sobre a sua vida sexual, procuram por todos os meios ocultá-la. Em
matéria sexual os homens são em geral insinceros. Não expõem a sua sexualidade
francamente; saem recobertos de espesso manto, tecido de mentiras, para se
resguardarem, como se reinasse um temporal terrível no mundo da sexualidade. E
não deixam de ter razão; o sol e o ar em nosso mundo civilizado não são
realmente favoráveis à atividade sexual. Com efeito, nenhum de nós pode
manifestar o seu erotismo francamente à turba.
[...] A propensão à neurose
deve provir por outra maneira de uma perturbação do desenvolvimento sexual. As
neuroses são para as perversões o que o negativo é para o positivo. Como nas
perversões, evidenciam-se nelas os mesmos componentes instintivos que mantêm os
complexos e são os formadores de sintomas; mas aqui eles agem do inconsciente,
onde puderam firmar-se apesar da repressão sofrida. A psicanálise nos mostra
que a manifestação excessivamente intensa e prematura desses impulsos conduz a
uma espécie de fixação parcial
— ponto fraco na estrutura da função sexual. Se o exercício da capacidade
genética normal encontra no adulto um obstáculo, rompe-se a repressão da fase
do desenvolvimento justamente naquele ponto em que se deu a fixação infantil.
[...] A literatura alemã conhece um vilarejo chamado Schilda, de cujos
habitantes se contam todas as espertezas possíveis. Dizem que possuíam eles um
cavalo com cuja força e trabalho estavam satisfeitíssimos. Uma só coisa
lamentavam: consumia aveia demais e esta era cara. Resolveram tirá-lo pouco a
pouco desse mau costume, diminuindo a ração de alguns grãos diariamente, até
acostumá-lo à abstinência completa. Durante certo tempo tudo correu
magnificamente; o cavalo já estava comendo apenas um grãozinho e no dia
seguinte devia finalmente trabalhar sem alimento algum. No outro dia amanheceu
morto o pérfido animal; e os cidadãos de Schilda não sabiam explicar por quê. Nós nos inclinaremos a crer que o
cavalo morreu de fome e que sem certa ração de aveia não podemos esperar em
geral trabalho de animal algum [...].
CINCO
LIÇÕES DE PSICANÁLISE –
A obra Cinco lições de psicanálise, de Sigmund Freud, é o resultado de
pronunciamentos efetuados por ocasião das comemorações do vigésimo aniversário da
Fundação da Clark University, Worcester, Massachusetts, em setembro de 1909,
tratando de temas como a histeria, trauma psíquico, método catártico,
repressão, resistência, sublimação, catexia, associação livre, conteúdo
manifesto e latente, condensação, deslocamento, ato falho, auto-erotismo, zona
erógena, Complexo de Édipo, libido, sadomasoquismo, sexualidade infantil e a
história da construção do pensamento psicanalítico.
REFERÊNCIAS
FREUD, Sigmund. Cinco lições de
psicanálise. São Paulo: Abril Cultural, 1978.