[...] considero
que não notamos que haja algum sujeito que atue mais imediatamente contra nossa
alma do que o corpo ao qual está unida, e que, por conseguinte, devemos pensar
que aquilo que nela é uma paixão é comumente nele uma ação; de modo que não
existe melhor caminho para chegar ao conhecimento de nossas paixões do que
examinar a diferença que há entre a alma e o corpo, a fim de saber a qual dos
dois se deve atribuir cada uma das funções existentes em nós.
[...] que
tudo o que existe em nós, e que não concebemos de modo algum como passível de
pertencer a um corpo, deve ser atribuído à nossa alma.
[...] a morte nunca sobrevêm por culpa da alma,
mas somente porque alguma das principais partes do corpo se corrompe; e
julguemos que o corpo de um homem vivo difere do de um morto como um relógio,
ou outro autômato (isto é, outra máquina que se mova por si mesma), quando está
montado e tem em si o princípio corporal dos movimentos para os quais foi
instituído, com tudo o que se requer para a sua ação, difere do mesmo relógio,
ou outra máquina, quando está quebrado e o princípio de seu movimento pára de
agir.
[...] enquanto vive mos, há um contínuo calor em
nosso coração, que é uma espécie de fogo aí mantido pelo sangue das veias, e
que esse fogo é o princípio corporal de todos os movimentos de nossos membros.
[...] todas as paixões consiste apenas no fato de
disporem a alma a querer coisas que a natureza dita serem úteis a nós, e a
persistir nessa vontade, assim como a mesma agitação dos espíritos que costuma
causá-las dispõe o corpo aos movimentos que servem à execução dessas coisas.
[...] E agora que as conhecemos todas, temos muito
menos motivo de as temer do que tínhamos antes; pois verificamos que são todas
boas por natureza e que só devemos evitar o seu mau uso ou os seus excessos,
contra os quais os remédios que expliquei poderiam bastar, se cada um tivesse
cuidado bastante para praticá-los. Mas, como incluí entre esses remédios a
premeditação e a indústria pela qual se podem corrigir os defeitos naturais,
exercitando-nos em separar em nós os movimentos do sangue e dos espíritos dos
pensamentos aos quais costumam estar unidos, confesso que há poucas pessoas que
se tenham suficientemente preparado dessa maneira contra todas as espécies de
recontros, e que esses movimentos excitados no sangue pelos objetos das paixões
seguem primeiro tão prontamente das simples impressões que se fazem no cérebro
e da disposição dos órgãos, ainda que a alma não contribua para tanto, de
qualquer maneira, que não há nenhuma sabedoria humana capaz de resistir-lhes
quando não estamos para isso bem preparados. Assim, muitos não poderiam
abster-se de rir, quando lhes fazem cócegas, embora não colham daí nenhum
prazer; pois a impressão da alegria e da surpresa que outrora os fez rir pelo
mesmo motivo, estando desperta em sua fantasia, faz com que seus pulmões sejam
subitamente inflados, contra a vontade, pelo sangue que o coração lhes envia.
Assim, os que têm, por natureza, forte pendor para as emoções da alegria e da
compaixão, ou do medo, ou da cólera, não podem impedir-se de desmaiar, ou de
chorar, ou de tremer, ou de ter o sangue todo agitado como se tivessem febre,
quando a sua fantasia é fortemente tocada pelo objeto de alguma dessas paixões.
Mas o que se pode sempre fazer em tal ocasião, e que eu julgo poder apresentar
aqui como o remédio mais geral e o mais fácil de praticar contra todos os
excessos das paixões, é, sempre que se sinta o sangue assim agitado, ficar
advertido e lembrar-se de que tudo quanto se apresenta à imaginação tende a
enganar a alma e a fazer com que as razões empregadas em persuadir o objeto de
sua paixão lhe pareçam muito mais fortes do que são, e as que servem para
dissuadir muito mais fracas. E quando a paixão persuade apenas de coisas cuja
execução sofre alguma delonga, cumpre abster-se de pronunciar na hora qualquer
julgamento e distrair-se com outros pensamentos até que o tempo e o repouso
tenham apaziguado inteiramente a emoção que se acha no sangue. E, enfim, quando
ela incita a ações no tocante às quais é necessário tomar uma resolução
imediata, é mister que a vontade se aplique principalmente a considerar e a
seguir as razões contrárias àquelas que a paixão representa, ainda que pareçam
menos fortes: como quando se é inopinadamente atacado por algum inimigo e a
ocasião não permite que se empregue algum tempo em deliberar. Mas o que me
parece que os que estão acostumados a refletir sobre as suas ações podem sempre
fazer é, quando se sentirem tomados de medo, esforçarem-se por desviar o
pensamento da consideração do perigo, representando-se as razões pelas quais há
muito mais segurança e mais honra na resistência do que na fuga; e, ao
contrário, quando sentirem que o desejo de vingança e a cólera os incitam a
correr inconsideradamente para aqueles que os atacam, lembrar-se-ão de pensar
que é uma imprudência o perder-se, quando é possível sem desonra salvar-se, e
que, se a partida é muito desigual, vale mais efetuar uma honesta retirada ou
tomar quartel do que expor-se brutalmente a uma morte certa.
AS
PAIXÕES DA ALMA – O
livro As paixões da alma, filósofo e
matemático francês René Descartes (1596-1650), trata de temas como das paixões
em relação a um sujeito como ação a qualquer respeito, o corpo e a alma, o
calor e o movimento, o princípio de todas as funções, o movimento do coração,
as causas da diversidade, as funções da alma, a vontade, a percepção,
imaginação, a definição das paixões da alma, a sede das paixões, do número e da
ordem das paixões e a explicação das leis primitivas, a admiração, a estima ou
o desprezo, a generosidade e orgulho, a humildade e a baixeza, a veneração e o
desdém, o amor e o ódio, o desejo, a esperança e o temor, o ciúme, a segurança
e o desespero, a irresolução e a coragem, a ousadia, a emulação, a covardia e o
pavor, o remorso, a alegria e a tristeza, a zombaria, a inveja e a piedade, a
satisfação de si mesmo e o arrependimento, o favor e o reconhecimento, a
indignação e a cólera, a gloria e a vergonha, o fastio, o pesar e a alegria, as
seis paixões primitivas, o espanto, para que servem todas as paixões, afeição,
amizade e devoção, do agrado e do horror, prazer físico e dor, o movimento do
sangue e os espíritos, das ações dos olhos e do rosto, das mudanças de cor, dos
tremores e da languidez, desmaio, riso, indignação, o choro, os gemidos e as
lágrimas, suspiros, das emoções interiores da alma, das paixões particulares,
da estima e do desprezo, humildade virtuosa e viciosa, o desdém, do uso da
troça, o justo e injusto, compaixão, compulsão, arrependimento, do favor e da
ingratidão, da cólera, da impudência, do fastio e do pesar, do júbilo e o
remédio geral contra as paixões.
REFERÊNCIAS
DESCARTES, René. As paixões da alma. São
Paulo: Abril Cultural, 1979.