NIETZSCHE E A PSICOLOGIA – Evidente que a
motivação para a realização do presente trabalho partiu da leitura do romance
do Irving D. Yalom, Quando Nietzsche
chorou, traduzido pelo Ivo Korytowski e que virou filme dirigido por
Pinchas Perry, como também da obra Nietzsche e Freud, de Reinhard Gasser.
Merece também registro a menção de Mosé (2005)
ao fato da multiplicidade e proliferação de estudos cada vez mais diversificados
acerca da obra do filósofo alemão, bem como o entendimento de Giacóia Junior (2001)
de que o filósofo exerceu importante influência que o caracteriza como psicólogo.
Com isso, por meio de uma revisão da
literatura, caracteriza-se esta abordagem como uma pesquisa bibliográfica
embasada nas fontes disponibilizadas.
A FILOSOFIA E A PSICOLOGIA DE NIETZSCHE - A
filosofia de Nietzsche, no dizer de Mosé (2005) é extremamente erudita e com um
posicionamento crítico com relação à própria filosofia, adotando a ideia do
devir por meio de três linhas de raciocínio: a arte, o pensamento e o saber.
No dizer de Cotrim (2006), o filósofo teceu
uma abordagem da genealogia da moral produto do histórico-cultural, tendo por
consequência, no dizer de Chauí (2002 ), Giacoia Junior (2001) e Souza (2014), o
desenvolvimento do Existencialismo inaugurado por Kierkegaard. Esse filósofo
começará a lecionar filosofia clássica na Universidade da Basileia, em 1869,
publicando seu primeiro livro O nascimento da tragédia no espírito da música,
em 1872. Entretanto, é com o lançamento da sua obra Humano, demasiado humano,
em 1878, que Nietzsche passará se autodenominar de psicólogo.
A
filosofia de Nietzsche, em conformidade com Noffat Neto (1991), Giacóia Junior (2001) e Marques (2003),
é uma filosofia dos afetos, das paixões e desejos, que contempla o
individualismo, a força, a abundância e os instintos de vida. Para ele
filosofar não era uma atitude teórica e contemplativa, mas uma atitude prática
que se enraíza na vida, um ato de libertação de toda subjugação, de toda moral,
de toda deformação e de tudo aquilo que nos prende a religiões, grupos e
ideologias.
Em um determinado período da sua vida, a filosofia
nietzschiana se voltou para a psicologia. Inclusive, Nascimento (2006) registra
que esse filósofo se autodenominava psicólogo e em muitas de suas obras encontra-se
a denominação de psicologia na sua proposta filosófica.
É o que também identificam Oliveira (2014),
Barbosa (2014) e Williams (2014), ao
mencionarem que nos chamados escritos intermediários do filósofo, ocorrido no
período entre 1876 e 1882, ele adota o procedimento de análise nomeado por ele
mesmo de psicologia, se autoproclamando o primeiro psicólogo da história e
efetuando uma relação interdisciplinar entre psicologia e morfologia,
fisiologia, cultura, história, literatura, linguística, medicina e muitas
outras áreas do conhecimento.
Nietzsche (1978, p. 37) entende que a
psicologia é a “[...] ciência que indaga a origem
e a história dos chamados sentimentos morais e que, ao progredir, tem de expor
e resolver os emaranhados problemas sociológicos”. Nessa ótica, ele faz adoção do procedimento
que conjuga as vertentes históricas, fisiológicas e psicológicas unidas à sua
filosofia, sob a proposta de tentativa da compreensão a partir do sentimento e
das valorações humanas. Assim, para esse autor, a fisiopsicologia é entendida
como instrumento de dissecação psicológica dos fenômenos morais.
A respeito disso, assinala Vianna (1995) e
Giacoia Junior (2001), que a psicologia nietzscheana compreende a visão além
dos ângulos da realidade existencial, identificada na dimensão pulsional dos
instintos.
Noutra ocasião Nietzsche (2002, p. 23) assevera
que “Toda psicologia, até o momento, tem estado
presa a preconceitos e temores morais: não ousou descer às profundezas.
Compreendê-la como morfologia e teoria
da evolução da vontade de poder, tal como faço – isto é algo que ninguém
tocou sequer em pensamento”. Nesse sentido, ele faz uso da noção procedimental
fisiopsicológica para asseverar que a cultura é um sintoma fisiopsicológico das
construções humanas, ao reinterpretar o corpo no contexto da corporalidade com
o significado de instrumento complexo das múltiplas pulsões vitais e para
romper com a dualística convenção do corpo/alma. Dessa forma, o filósofo
entende que o ser humano é o resultado da luta das forças biológicas e
psicológicas.
Noutro momento, Nietzsche (2012, p. 354) assinala que: “Poderíamos, com
efeito, pensar, sentir, querer, recordar-nos, poderíamos igualmente agir em
todo sentido da palavra: e a despeito disso, não seria preciso que tudo isso
nos entrasse na consciência (como se diz, em imagem)”. Com esse pensamento o
filósofo defende que a consciência é independente das funções fisiológicas e
psíquicas.
Observa-se, portanto, que o autor coloca a
psicologia no centro das ciências para alcance do ser humano de forma integral,
reconhecendo-se a valorização do psíquico e fisiológico independentemente da
consciência.
Com esse entendimento, Oliveira (2014, p. 1)
assevera que:
A psicologia de Nietzsche está na base, portanto, de seu
projeto de uma ética da amizade porque, ao destituir a moral de seus
fundamentos metafísicos, ela abre a possibilidade de pensar as relações humanas
e o próprio humano para além do princípio gregário do ethos.
Observa-se que a concepção nietzschiana, segundo Vianna (1995, p. 32), é
na direção de uma singular psicologia ‘[...] ao operar com as pulsões
artísticas da natureza manifesta um inconsciente primordial o qual escapa às
possibilidades de representação da consciência. A dimensão do inconsciente
emerge como função de um princípio ativo”. Por esse entendimento, essa
psicologia está situada no domínio da reflexão filosófica com características
definidas na valoração positiva da experiência sensível como fonte principal do
conhecimento.
A primeira identificação da psicologia
nietzschiana, segundo Nascimento (2006, p. 49) está identificada como uma
psicologia da tragédia, quando:
O psicólogo Nietzsche, num
primeiro momento, analisará a tragédia grega e verá um elemento comum entre ela
e a psicologia do povo helênico, que é a luta entre as forças apolíneas e
dionisíacas. A relação entre elas vai definir uma teoria da civilização e da
cultura, bem como uma teoria da arte. A morte da tragédia aparece como a
metáfora viva da morte do mundo antigo e aponta desdobramentos na cultura, como,
por exemplo, a primazia da razão sobre os instintos, nascida a partir da
metafísica socrática que acaba se impondo na cultura do Ocidente, sobretudo em
sua face platônica.
A segunda identificação da psicologia
nietzschiana, para Nascimento (2006, p. 51), é quando o filósofo:
[...] vai propor uma
psicologia que desmascara as bases de onde a metafísica se apoia e partirá da
desmontagem da moralidade, posto que a metafísica é vista como produtora de
filósofos da moral. Ao questionar a origem das representações e sentimentos
morais afirmará que por detrás das ações morais, o que há, são motivações
humanas, demasiado humanas, denunciando a servidão do homem aos conceitos e
normas “superiores” que são tomados como vida.
Nesse sentido, a autora mencionada identifica
que essa psicologia surge no contexto de uma ciência capaz de indagar a
história do mundo como representação, ultrapassando a metafísica.
Uma terceira identificação da psicologia
nietzschiana registrada por Nascimento (2006, p. 55), considera que o filósofo:
[...] vai problematizar o
que vem a ser a consciência. A psicologia, para se desprender dos preconceitos
e temores morais, precisaria interpretar e avaliar a vida enquanto potência.
[...] O novo psicólogo vai percorrer o sentido e o valor que vão se manifestar
nas relações de forças e nas formas como a vontade de potência se apresenta.
Em vista disso, entende a autora que
Nietzsche será levado pelas motivações do inconsciente problematizando a
natureza do conhecer, entendendo ele que os impulsos serão os agentes que se
encontram por trás do conhecimento e que funcionam com a relação existente com
outros impulsos, agindo e resistindo uns aos outros.
Tem-se, portanto, conforme Nascimento (2006,
p. 221) que o filósofo em estudo:
[...] busca como psicólogo
investigar e diagnosticar a saúde de uma cultura a partir da base, pautado na
arte de interpretação dos sintomas manifestos na vida. A proposta de uma nova
psicologia, pautada em outros valores, mais próximos da vida, em sua forma
plena, ou seja, entendida como vontade de potência.
Acrescenta Barbosa (2014, p. 2) que “[...] o argumento da gênese social da
consciência fornecido por Nietzsche, vem corroborar com as explicações não
dicotômicas sobre os sujeitos e sua interação com o mundo fruto da nova visão
da Psicologia Social”. E conforme Fonseca (2014, p. 1):
[...] Nietzsche re-lança na cultura moderna da civilização
ocidental os fundamentos da perspectiva ética de afirmação do vivido, de
constituição dele como fundamento do verdadeiro e dos valores, perspectiva
ética de afirmação do corpo e dos sentidos, que vai constituir um fundamento
das psicologias humanistas e da ACP [...]
Com
isso, o autor mencionado observa que se encontra em franco desenvolvimento
iniciativas de recuperação dos fundamentos da fenomenologia e do
existencialismo, em particular da filosofia da vida de Nietzsche, filosofia
essa que foi capaz de fornecer o substrato básico para o desenvolvimento da
psicologia e psicoterapia fenomenológico existencial organísmica (FONSECA,
2014).
Identifica-se
que o filósofo em estudo influenciou o desenvolvimento da psicanálise de Freud,
mesmo sendo irredutível o posicionamento de recusa do psicanalista quanto a
este fato, muito embora tenha, ao final de sua vida, reconhecido que Nietzsche
é o maior psicólogo de todos os tempos.
Também
fica identificada com base em Fonseca (2014, p. 1), a influencia do filósofo
alemão na psicologia do norte-americano Carl Ransom Rogers, com a observância
de que “[...] Bem ao gosto de Nietzsche, Rogers entendia que o existencial não
se conforma ao empistemológico, e epistemofílico, pressuposto científico da
busca de verdades. Não se conforma às esferas do conhecer, e do conhecimento, e
de suas vontades”.
É nesse
sentido que anota Speranza (2014, p. 1) que “[...] Tanto Nietzsche como a psicoterapia de base
fenomenológica têm em comum a existência afirmativa da vida”. Por consequência,
entende a autora em comento que a psicologia diante da espiritualidade humana,
numa perspectiva fenomenológico-existencial, utiliza-se como referencial a
filosofia de Nietzsche e a filosofia do diálogo do filósofo, escritor e
pedagogo austríaco Martin Buber que influenciará tanto a Gestalt como a
psicologia fenomenológico-existencial.
Acrescenta
Fonseca (2014b, p. 1) que:
Um aspecto que parece um
dos mais interessantes para a psicologia e psicoterapia fenomenológico-existencial
é que, ao mesmo tempo, o próprio empirismo aporético de Brentano aplicado à
consciência como método fenomenológico existencial especificamente
experimental, parece intimamente aparentado ao método experimental
perspectivativo de Nietzsche. De modo que estas duas vertentes fundamentais da
concepção do experimental num sentido fenomenológico existencial
compartilhariam raízes bastante próximas. [...]
Com essa associação, verifica-se o quanto o
filósofo alemão influenciou as mais diversas correntes psicológicas, sendo,
portanto, meritório de registro e destaque de sua importância para a psicologia
contemporânea.
CONTRIBUIÇÕES NIETZSCHEANA PARA A PSICOLOGIA –
Torna-se evidente, em primeiro lugar, a contribuição de Nietzsche para a Psicanálise
freudeana, conforme Gasser (1987), mesmo tendo Freud relutado a vida inteira
para, só perto da morte, admitir a importância de Nietzsche para a Psicologia.
Ter sido o filósofo aquele a assumir em suas
obras a condição de psicólogo, tratando sobre paixões, desejos, afetos, pulsões
da forma interdisciplinar a psicologia, morfologia, fisiologia, cultura, história,
literatura, linguística e medicina, entre outras áreas do conhecimento,
definindo-se por uma Fisiopsicologia que compreende uma visão além da realidade
existencial dentro de uma dimensão pulsional. Constata-se, ainda, que Nietzsche
coloca a Psicologia no centro da ciência.
Além do mais, identifica-se a nítida influência
exercida pelo filósofo alemão no pensamento de Carl Rogers, Martin Buber, na Gestalt e na Psicologia Fenomelógico-Existencial.
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* Trabalho desenvolvido para a disciplina
Bases Filosóficas e Epistemologias da Psicologia, ministrada pelo Professor Álvaro
Queiroz.
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