[...] a América tem o direito a ataques
preventivos, ou seja, a atacar países que ainda não representam uma ameaça
clara contra os Estados Unidos, mas que poderiam sê-lo no futuro; [...] aqui se reproduz o velho paradoxo da escolha
imposta, a liberdade de escolher com a condição de que se faça a escolha certa.
[...] a tese de que, longe de arrancar os
EUA de seu sono ideológico, o 11 de Setembro foi usado como o sedativo que permitiu
à ideologia dominante “renormalizar-se”[...], longe de acordar os EUA, o 11 de Setembro nos fez dormir outra vez,
continuar nosso sonho depois do pesadelo das últimas décadas.
[...] Kant em seu “O que é o Iluminismo”: “Pense o
quanto quiser, com toda a liberdade que quiser, mas obedeça!”. [...] oculto no raciocínio de Kant: a liberdade de
pensamento não somente não solapa a servidão social real, mas na verdade a
sustenta. [...] O que é problemático
na forma com a ideologia dominante nos impõe esta escolha não é o
fundamentalismo, mas a própria democracia: como se a única
alternativa ao “fundamentalismo” fosse o sistema político da democracia
parlamentar liberal.
[...] Ao
contrário do século XIX dos projetos e ideais utópicos ou científicos, dos
planos para o futuro, o século XX buscou a coisa em si – a realização direta da
esperada Nova Ordem. O momento último e definidor do século XX foi a
experiência direta do Real como oposição à realidade social diária – O Real e
sua violência extrema como o preço a ser pago pela retirada das camadas
enganadoras da realidade. [...]
Ernest Jünger já celebrava o combate
corpo-a-corpo como o autêntico encontro intersubjetivo: a autenticidade reside
no ato de violenta transgressão, do Real lacaniano.
[...] o paradoxo de, numa era frenética de
capitalismo global, o principal resultado da revolução é reduzir a dinâmica
social à imobilidade.[...] Paradoxalmente,
a própria volta à normalidade capitalista anti-messiânica é sentida como o
objeto da expectativa messiânica – aquilo que o país simplesmente espera, em estado
e animação congelada. Em Cuba, as próprias renúncias são sentidas/impostas como
prova da autenticidade do Evento revolucionário – o que em psicanálise é
chamado de lógica da castração. Toda a identidade político-ideológica se baseia
na fidelidade à castração.
[...] Se a paixão pelo Real termina no puro
semblante do espetacular efeito do Real, então em exata
inversão, a paixão pós-moderna pelo semblante termina numa volta violenta à paixão
pelo Real [...] A Realidade Virtual simplesmente generaliza
esse processo de oferecer um produto esvaziado de sua substância: oferece a
própria realidade esvaziada de sua substancia, do núcleo duro e resistente do
Real.
[...] Não foi a realidade que invadiu a nossa
imagem: foi a imagem que invadiu e destruiu a nossa realidade (ou seja, as
coordenadas simbólicas que determinam o que sentimos como realidade) [...] o que devíamos nos ter perguntado enquanto
olhávamos para os televisores no dia 11 de setembro é simplesmente: onde já vimos esta
mesma coisa repetida vezes sem conta? [...] a noção de Lacan
da “travessia da fantasia” como o momento conclusivo do tratamento
psicanalítico [...] do que deveria fazer a psicanálise: é
evidente que ela deveria nos libertar da influência das fantasias
idiossincráticas e nos permitir enfrentar a realidade como ela realmente é! Mas
isso é exatamente o que não faz parte das ideias
de Lacan – ele e deseja é quase exatamente o contrário. Na vida diária, estamos
imersos na “realidade” (estruturada e suportada pela fantasia) e essa imersão é
perturbada por sintomas que atestam o fato de que outro nível reprimido de
nossa psique resiste a ela. “Atravessar a fantasia” – a saber, com a
fantasia estrutura o excesso que resiste à nossa imersão na realidade diária.
[...] a dialética do semblante e do Real não pode
ser reduzida ao foto elementar de que a virtualização de nossas vidas diárias,
a experiência de vivermos cada vez mais num universo artificialmente
construído, gera a necessidade urgente de “retornar ao Real” para reencontrar
terreno firme em alguma “realidade real”. O Rela que retorna tem o status de outro
semblante: exatamente por ser
real, ou seja, em razão de seu caráter traumático e excessivo, não somos
capazes de integrá-lo na nossa realidade (no que sentimos como tal), e portanto
somos forçados a senti-lo como um pesadelo fantástico.
[...] A “guerra contra o terrorismo” funciona
então como um ato cujo verdadeiro objetivo é nos acalmar, na falsamente segura
convicção de que nada mudou realmente.
[...] a explosão e colapso das torres gêmeas do
WTC em setembro de 2001 foram, pelo contrário, o último grito espetacular da
guerra do século XX. O que nos espera é algo muito mias estranho: o espectro de
uma guerra “imaterial”, em que o ataque é invisível. Estamos entrando numa nova
era de guerra paranóica em que a principal tarefa será identificar o inimigo e
suas armas. Nessa nova guerra, os agentes vão cada vez menos assumir
publicamente seus atos.
[...] a única atitude aceitável é a solidariedade
incondicional com todas as vítimas. A atitude
ética correta é aqui substituída pela matemática moralizadora da culpa e do
horror, que perde de vista um ponto importante: a morte terrível de todo
indivíduo é absoluta e incomparável.
[...] o liberalismo capitalista global
que se opõe ao fundamentalismo maometano é ele próprio um modo de
fundamentalismo, de forma que, na atual “guerra contra o terrorismo”, estamos
na verdade diante de um choque de fundamentalismo. [...] esconde o paradoxo contrário, os
fundamentalistas maometanos não são verdadeiramente fundamentalistas, já são
“modernistas”, um produto e um fenômeno do capitalismo global moderno –
representam a forma como o mundo árabe luta para se ajustar ao capitalismo global.
Quando tratamos com a esquerda atual, devemos sempre ter em mente o narcisismo
da esquerda pela Causa perdida.
Em psicanálise, a
traição do desejo tem um nome preciso: felicidade. Quando extamente se pode
dizer que a pessoas são felizes? Três condições da felicidade na
Tchecoslováquia no final da década de 1970: 1. Suas necessidades materiais
básicas eram satisfeitas – não excessivamente bem satisfeitas,
pois o próprio excesso de consumo pode gerar infelicidade. 2. Uma segunda
característica, extremamente importante: existia o Outro (o partido) para
receber a culpa de tudo que estivesse errado, de forma que ninguém tinha de se
sentir verdadeiramente responsável. 3. [...]
havia um Outro Lugar ( o Ocidente
consumista) com que sempre se podia sonhar [...] É um conceito pagão: para os pagãos,
o objetivo da vida é ser feliz (a ideia de “viver felizes para sempre” é uma
versão cristianizada do paganismo),e o sentido religioso e a atividade política
são considerados as mais altas formas de felicidade (ver Aristóteles).
Era
pós-moderna que as gerações mais velhas são substituídas pelas mais novas, em
que tudo que aparece tem de desaparecer mais cedo ou mais tarde.
[...] Não devemos jamais reduzir o Outro a nosso
inimigo, a defensor do falso conhecimento, e assim por diante: nele ou nela
sempre há de existir o Absoluto do impenetrável abismo de outra pessoa. O
totalitarismo do século XX, com seus milhões de vítimas, mostrou o resultado
último de seguir até o fim o que nos parece uma “ação subjetivamente justa”.
[...] A democracia é hoje o principal fetiche
político, a rejeição dos antagonismos sociais básicos: na situação eleitoral, a
hierarquia social é momentaneamente suspensa, o corpo social é reduzido a uma
multidão pura passível de ser contada, e aqui também o antagonismo é suspenso.
[...] Esse é o grande paradoxo da
democracia: dentro da ordem política existente, toda campanha conta a corrupção
termina cooptada pela extrema direita populista.
[...] A ordem política democrática é por sua
própria natureza suscetível à corrupção. A escolha última é: aceitamos e
endossamos essa corrupção com um espírito de sabedoria resignada e realista, ou
reunimos a coragem para formular uma alternativa de esquerda à democracia para
quebrar esse círculo viciosos de corrupção democrática e a campanha direitista
para se livrar dela?
[...] fuga para a privacidade hoje significa
adotar as fórmulas de autenticidade privada propagadas pela indústria cultural
recente – desde as ligações sobre o iluminamento espiritual, a última mania
cultural e outras modas, até as atividades físicas da corrida e do fisioculturismo.
A verdade última do retiro na privacidade é a confissão pública de segredos
íntimos num programa de TV – contra essa espécie de privacidade, devemos enfatizar
que hoje a única forma de romper as restrições da mercadização alienada é inventar
uma nova coletividade. O resultado último da subjetivação global não é o
desaparecimento da “realidade objetiva”, mas o desaparecimento de nossa próprio
subjetividade, que se transforma num capricho fútil, enquanto a realidade
social continua seu curso.
[...] A noção “totalitária” de um “mundo
administrado”, em que a experiência mesma da liberdade subjetiva seja a forma
como surge a sujeição a mecanismos disciplinadores, é na verdade o verso
fantasmático obsceno da ideologia (e prática) pública “oficial” da autonomia
individual e da liberdade [...] A
completa passividade é a fantasia política proibida que mantém nossa
experiência consciente como sujeitos ativos e autodefinidores – é a perversa
fantasia definitiva: a noção de que, no mais íntimo de nosso ser, somos
instrumentos da jouissance do Outro (Matriz),
esvaziados da substância da vida como baterias.
Nosso dever hoje é
acompanhar esses atos, esses momentos éticos. O pior pecado é dissolver esses
atos na falsa universalidade do “ninguém é puro”. É sempre possível jogar esse
jogo, que oferece ganho duplo ao jogador: o de manter a superioridade moral
sobre aqueles que se envolvem na luta
[...]
O pior a fazer com
relação aos acontecimentos de 11 de setembro é elevá-los à condição de Mal
Absoluto, um vácuo que não pode ser explicado nem dialetizado.
[...] O que esta em jogo agora não são diferentes
opções econômicas ou políticas, mas nossa própria sobrevivência – na guerra ao
terrorismo, ou vocês estão conosco ou estão contra nós”. E é aqui nesse ponto
em que a referência à sobrevivência faz sua entrada em cena como legitimação
última, que estamos tratando com a ideologia política em estado puro.
[...] o Estado de hoje está realmente definhando
(com o advento da tão falada “desregulamentação” liberal)? Ou, pelo contrário,
a “guerra ao terrorismo” não seria a afirmação mais forte ainda da autoridade
do Estado? Não estaremos testemunhando hoje a mobilização inédita de todos os
aparelhos (repressivos e ideológicos) do Estado? [...] Esta é a
verdade da globalização: a construção de novos muros isolando os
europeus prósperos do fluxo de imigrantes.
BEM-VINDO AO DESERTO DO
REAL – O livro Bem-Vindo ao deserto do Real: cinco ensaios
sobre o 11 de setembro e datas relacionadas – Estado de Sítio, do filósofo, teórico crítico e cientista social esloveno Slavoj
Žižek, trata de temas as paixões do real, paixões do semblante, reapropriações,
a lição do mulá Omar, a felicidade depois do 11 de setembro, do Homo otarius a
Homo Sacer, o cheiro do amor e a política do Real, entre outros assuntos.
REFERÊNCIA
ŽIŽEK,
Slavoj. Bem-Vindo ao deserto do Real: cinco ensaios sobre o 11 de setembro e
datas relacionadas – Estado de Sítio.
São Paulo: Boitempo, 2003 .