sábado, 28 de março de 2015

BEM-VINDO AO DESERTO DO REAL, DE SLAVOJ ŽIŽEK


[...] a América tem o direito a ataques preventivos, ou seja, a atacar países que ainda não representam uma ameaça clara contra os Estados Unidos, mas que poderiam sê-lo no futuro; [...] aqui se reproduz o velho paradoxo da escolha imposta, a liberdade de escolher com a condição de que se faça a escolha certa. [...] a tese de que, longe de arrancar os EUA de seu sono ideológico, o 11 de Setembro foi usado como o sedativo que permitiu à ideologia dominante “renormalizar-se”[...], longe de acordar os EUA, o 11 de Setembro nos fez dormir outra vez, continuar nosso sonho depois do pesadelo das últimas décadas.
[...] Kant em seu “O que é o Iluminismo”: “Pense o quanto quiser, com toda a liberdade que quiser, mas obedeça!”. [...] oculto no raciocínio de Kant: a liberdade de pensamento não somente não solapa a servidão social real, mas na verdade a sustenta. [...] O que é problemático na forma com a ideologia dominante nos impõe esta escolha não é o fundamentalismo, mas a própria democracia: como se a única alternativa ao “fundamentalismo” fosse o sistema político da democracia parlamentar liberal.
[...] Ao contrário do século XIX dos projetos e ideais utópicos ou científicos, dos planos para o futuro, o século XX buscou a coisa em si – a realização direta da esperada Nova Ordem. O momento último e definidor do século XX foi a experiência direta do Real como oposição à realidade social diária – O Real e sua violência extrema como o preço a ser pago pela retirada das camadas enganadoras da realidade. [...] Ernest Jünger já celebrava o combate corpo-a-corpo como o autêntico encontro intersubjetivo: a autenticidade reside no ato de violenta transgressão, do Real lacaniano.
[...] o paradoxo de, numa era frenética de capitalismo global, o principal resultado da revolução é reduzir a dinâmica social à imobilidade.[...] Paradoxalmente, a própria volta à normalidade capitalista anti-messiânica é sentida como o objeto da expectativa messiânica – aquilo que o país simplesmente espera, em estado e animação congelada. Em Cuba, as próprias renúncias são sentidas/impostas como prova da autenticidade do Evento revolucionário – o que em psicanálise é chamado de lógica da castração. Toda a identidade político-ideológica se baseia na fidelidade à castração.
[...] Se a paixão pelo Real termina no puro semblante do espetacular efeito do Real, então em exata inversão, a paixão pós-moderna pelo semblante termina numa volta violenta à paixão pelo Real [...] A Realidade Virtual simplesmente generaliza esse processo de oferecer um produto esvaziado de sua substância: oferece a própria realidade esvaziada de sua substancia, do núcleo duro e resistente do Real.
[...] Não foi a realidade que invadiu a nossa imagem: foi a imagem que invadiu e destruiu a nossa realidade (ou seja, as coordenadas simbólicas que determinam o que sentimos como realidade) [...] o que devíamos nos ter perguntado enquanto olhávamos para os televisores no dia 11 de setembro é simplesmente: onde já vimos esta mesma coisa repetida vezes sem conta? [...] a noção de Lacan da “travessia da fantasia” como o momento conclusivo do tratamento psicanalítico [...] do que deveria fazer a psicanálise: é evidente que ela deveria nos libertar da influência das fantasias idiossincráticas e nos permitir enfrentar a realidade como ela realmente é! Mas isso é exatamente o que não faz parte das ideias de Lacan – ele e deseja é quase exatamente o contrário. Na vida diária, estamos imersos na “realidade” (estruturada e suportada pela fantasia) e essa imersão é perturbada por sintomas que atestam o fato de que outro nível reprimido de nossa psique resiste a ela. “Atravessar a fantasia” – a saber, com a fantasia estrutura o excesso que resiste à nossa imersão na realidade diária.
[...] a dialética do semblante e do Real não pode ser reduzida ao foto elementar de que a virtualização de nossas vidas diárias, a experiência de vivermos cada vez mais num universo artificialmente construído, gera a necessidade urgente de “retornar ao Real” para reencontrar terreno firme em alguma “realidade real”. O Rela que retorna tem o status de outro semblante: exatamente por ser real, ou seja, em razão de seu caráter traumático e excessivo, não somos capazes de integrá-lo na nossa realidade (no que sentimos como tal), e portanto somos forçados a senti-lo como um pesadelo fantástico.
[...] A “guerra contra o terrorismo” funciona então como um ato cujo verdadeiro objetivo é nos acalmar, na falsamente segura convicção de que nada mudou realmente.
[...] a explosão e colapso das torres gêmeas do WTC em setembro de 2001 foram, pelo contrário, o último grito espetacular da guerra do século XX. O que nos espera é algo muito mias estranho: o espectro de uma guerra “imaterial”, em que o ataque é invisível. Estamos entrando numa nova era de guerra paranóica em que a principal tarefa será identificar o inimigo e suas armas. Nessa nova guerra, os agentes vão cada vez menos assumir publicamente seus atos.
[...] a única atitude aceitável é a solidariedade incondicional com todas as vítimas. A atitude ética correta é aqui substituída pela matemática moralizadora da culpa e do horror, que perde de vista um ponto importante: a morte terrível de todo indivíduo é absoluta e incomparável. [...] o liberalismo capitalista global que se opõe ao fundamentalismo maometano é ele próprio um modo de fundamentalismo, de forma que, na atual “guerra contra o terrorismo”, estamos na verdade diante de um choque de fundamentalismo. [...] esconde o paradoxo contrário, os fundamentalistas maometanos não são verdadeiramente fundamentalistas, já são “modernistas”, um produto e um fenômeno do capitalismo global moderno – representam a forma como o mundo árabe luta para se ajustar ao capitalismo global. Quando tratamos com a esquerda atual, devemos sempre ter em mente o narcisismo da esquerda pela Causa perdida.
Em psicanálise, a traição do desejo tem um nome preciso: felicidade. Quando extamente se pode dizer que a pessoas são felizes? Três condições da felicidade na Tchecoslováquia no final da década de 1970: 1. Suas necessidades materiais básicas eram satisfeitas – não excessivamente bem satisfeitas, pois o próprio excesso de consumo pode gerar infelicidade. 2. Uma segunda característica, extremamente importante: existia o Outro (o partido) para receber a culpa de tudo que estivesse errado, de forma que ninguém tinha de se sentir verdadeiramente responsável. 3. [...] havia um Outro Lugar ( o Ocidente consumista) com que sempre se podia sonhar [...] É um conceito pagão: para os pagãos, o objetivo da vida é ser feliz (a ideia de “viver felizes para sempre” é uma versão cristianizada do paganismo),e o sentido religioso e a atividade política são considerados as mais altas formas de felicidade (ver Aristóteles).
Era pós-moderna que as gerações mais velhas são substituídas pelas mais novas, em que tudo que aparece tem de desaparecer mais cedo ou mais tarde.
[...] Não devemos jamais reduzir o Outro a nosso inimigo, a defensor do falso conhecimento, e assim por diante: nele ou nela sempre há de existir o Absoluto do impenetrável abismo de outra pessoa. O totalitarismo do século XX, com seus milhões de vítimas, mostrou o resultado último de seguir até o fim o que nos parece uma “ação subjetivamente justa”.
[...] A democracia é hoje o principal fetiche político, a rejeição dos antagonismos sociais básicos: na situação eleitoral, a hierarquia social é momentaneamente suspensa, o corpo social é reduzido a uma multidão pura passível de ser contada, e aqui também o antagonismo é suspenso. [...] Esse é o grande paradoxo da democracia: dentro da ordem política existente, toda campanha conta a corrupção termina cooptada pela extrema direita populista.
[...] A ordem política democrática é por sua própria natureza suscetível à corrupção. A escolha última é: aceitamos e endossamos essa corrupção com um espírito de sabedoria resignada e realista, ou reunimos a coragem para formular uma alternativa de esquerda à democracia para quebrar esse círculo viciosos de corrupção democrática e a campanha direitista para se livrar dela?
[...] fuga para a privacidade hoje significa adotar as fórmulas de autenticidade privada propagadas pela indústria cultural recente – desde as ligações sobre o iluminamento espiritual, a última mania cultural e outras modas, até as atividades físicas da corrida e do fisioculturismo. A verdade última do retiro na privacidade é a confissão pública de segredos íntimos num programa de TV – contra essa espécie de privacidade, devemos enfatizar que hoje a única forma de romper as restrições da mercadização alienada é inventar uma nova coletividade. O resultado último da subjetivação global não é o desaparecimento da “realidade objetiva”, mas o desaparecimento de nossa próprio subjetividade, que se transforma num capricho fútil, enquanto a realidade social continua seu curso.
[...] A noção “totalitária” de um “mundo administrado”, em que a experiência mesma da liberdade subjetiva seja a forma como surge a sujeição a mecanismos disciplinadores, é na verdade o verso fantasmático obsceno da ideologia (e prática) pública “oficial” da autonomia individual e da liberdade [...] A completa passividade é a fantasia política proibida que mantém nossa experiência consciente como sujeitos ativos e autodefinidores – é a perversa fantasia definitiva: a noção de que, no mais íntimo de nosso ser, somos instrumentos da jouissance do Outro (Matriz), esvaziados da substância da vida como baterias.
Nosso dever hoje é acompanhar esses atos, esses momentos éticos. O pior pecado é dissolver esses atos na falsa universalidade do “ninguém é puro”. É sempre possível jogar esse jogo, que oferece ganho duplo ao jogador: o de manter a superioridade moral sobre aqueles que se envolvem na luta [...]
O pior a fazer com relação aos acontecimentos de 11 de setembro é elevá-los à condição de Mal Absoluto, um vácuo que não pode ser explicado nem dialetizado.
[...] O que esta em jogo agora não são diferentes opções econômicas ou políticas, mas nossa própria sobrevivência – na guerra ao terrorismo, ou vocês estão conosco ou estão contra nós”. E é aqui nesse ponto em que a referência à sobrevivência faz sua entrada em cena como legitimação última, que estamos tratando com a ideologia política em estado puro.
[...] o Estado de hoje está realmente definhando (com o advento da tão falada “desregulamentação” liberal)? Ou, pelo contrário, a “guerra ao terrorismo” não seria a afirmação mais forte ainda da autoridade do Estado? Não estaremos testemunhando hoje a mobilização inédita de todos os aparelhos (repressivos e ideológicos) do Estado? [...] Esta é a verdade da globalização: a construção de novos muros isolando os europeus prósperos do fluxo de imigrantes.

BEM-VINDO AO DESERTO DO REAL – O livro Bem-Vindo ao deserto do Real: cinco ensaios sobre o 11 de setembro e datas relacionadas – Estado de Sítio, do filósofo, teórico crítico e cientista social esloveno Slavoj Žižek, trata de temas as paixões do real, paixões do semblante, reapropriações, a lição do mulá Omar, a felicidade depois do 11 de setembro, do Homo otarius a Homo Sacer, o cheiro do amor e a política do Real, entre outros assuntos.

REFERÊNCIA
ŽIŽEK, Slavoj. Bem-Vindo ao deserto do Real: cinco ensaios sobre o 11 de setembro e datas relacionadas – Estado de Sítio. São Paulo: Boitempo, 2003 .

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