AO LER,
LEMOS A NÓS MESMOS
“Há realidades que só a ficção suporta.
Precisam ser inventadas para ser contadas”. Eliane Brum.
Graça Lins*
De todas as competências
culturais, a leitura é, com certeza, a mais valorizada socialmente, uma vez que
favorece a circulação do indivíduo, em todas as ambiências da sociedade,
conferindo-lhe um empoderamento e um saber que o diferencia dos demais.
O que lemos, quando lemos?
O que denunciamos quando nos referimos aos nossos autores preferidos? O que nos
leva a indicar determinadas obras literárias em detrimento de outras
legitimadas pela mídia e referendadas pelo senso comum?
A leitura do texto
ficcional permite ao leitor a interpretação de sua própria vida, num encontro
em que ocorre a leitura de si mesmo, ajudando-o a lidar melhor com seus
conflitos psíquicos. É dessa forma que a psicanálise considera que apenas a
competência leitora não dá conta de perceber os efeitos que o texto literário
provoca no leitor.
Ao ler, o leitor compactua
com o que está posto e encoberto pela fantasia, pelo imaginário e pelo
simbólico proposto pelo autor e resgata através da leitura fragmentos de vida
que constituem vestígios de seu inconsciente.
É natural que depare-se com
algo que o desestabilize emocionalmente, ocasionando um estranhamento diante da
ficção. Assim, ao tempo em que o texto provoca um prazer estético pode evocar
lembranças remotas, memória de um passado distante revestido pela fantasia que
o texto significa.
A citação de Brum, no
início do artigo, nos reporta a um romance de Cristovão Tezza, O filho eterno, em que o autor trata da
angústia de um pai ao receber a notícia do nascimento de um filho com síndrome
de Down. Toda a construção do texto narra a repulsa ao filho indesejado.
Posteriormente, em eventos de lançamento do livro, o autor confessa que utilizou-se
da ficção para discorrer sobre a sua
própria experiência pessoal com seu
filho Down, então personagem do romance.
Trata-se de uma narrativa
em que situações do cotidiano são narradas provocando no leitor sentimentos de
medo, indiferença, dúvida com relação ao amor do pai, estranheza diante da
falta de afeto, enfim, um bom livro para refletir sobre como o leitor se
presentifica no texto e os efeitos da leitura numa perspectiva psicanalítica.
Podemos ainda formular
outras indagações inquietantes: a leitura da ficção, enquanto experiência
estética, busca a satisfação de um desejo? Pode ter um caráter especular,
espaço em que o leitor se encontre na figura de uma personagem ou mesmo em algum
cenário da narrativa? O leitor pode ficar vulnerável a transferir para o mundo
da ficção os seus conflitos psíquicos, de forma consciente ou inconsciente,
identificando-se com uma personagem em cuja imagem projeta o seu afeto ou
hostilidade?
Algumas
dessas indagações encontram respostas em exemplos colhidos nos próprios textos da Literatura, os quais
consideramos metáforas, para compreender os efeitos que a ficção pode provocar
no leitor. Assim, percebemos o caso de Madame Bovary, do escritor francês
Gustave Flaubert, cuja personagem vivia um relacionamento desgastado e
entregava-se ao devaneio no ato da leitura, criando um universo paralelo,
transferindo para um mundo idealizado os desejos que habitavam o seu psiquismo.
A
respeito dessa forma envolvente de leitura realizada por Emma Bovary, Daniel
Pennac, em seu livro Como um romance,
sugere os Direitos imprescritíveis do leitor, sendo o 6º, o direito ao bovarismo, descrevendo com toques de
humor que trata-se de uma doença textualmente transmissível. Pennac
nos fala da necessidade de lembrarmos
nossas primeiras efervescências de leitores e da importância de montarmos um
pequeno altar a nossas antigas leituras, inclusive as mais bobas. São elas que
nos levam a nos emocionar com aquilo que fomos, rindo daquilo que nos
emocionava.
Outro
personagem da Literatura clássica, universal, D. Quixote de La Mancha, de
Cervantes, envolvia-se de tal forma no mundo dos livros, que passou a não
estabelecer limites entre o real e o imaginário. A exemplo, no capítulo XXVI,
D. Quixote assiste a um espetáculo de marionetes e passa a crer que se tratava
de uma luta real entre mouros e cristãos, chegando a lançar mão da espada,
destruir todos os bonecos, acreditando estar em combate contra os mouros para
salvar uma princesa.
Essas
ocorrências figurativas dos efeitos da leitura no leitor nos levam a entender que
são comportamentos aproximados a alguns conceitos psicanalíticos, a
identificação, a transferência, a projeção considerados mecanismos de defesa
que podem também ocorrer com o leitor real.
Ao ler-se a si mesmo através do texto ficcional o leitor passa a ser
interpretante e interpretado pela obra, é o que nos diz a Literatura e a
Psicanálise que dialogam com as subjetividades do indivíduo.
Os
estudos psicanalíticos se voltaram inicialmente para a criação literária,
investigando os impulsos que operam no interior do processo de criação
literária, revelando que nem sempre a escrita tem aspectos restauradores, ou
seja, a obra de arte pode ter impulsos destrutivos ocasionados pelo confronto do
artista, não só com a criação estética, mas com a falta, o sofrimento e
finitude.
Freud em
seus estudos sobre Dostoievski afirma que diante dos problemas que o artista
criador consegue sublimar, através da criação artística, a Literatura chegou
antes da Psicanálise com seus métodos analíticos. O artista recorre à
simbolização da dor através da arte com funções de restabelecer a cura psíquica
para seus males.
De outro
modo, o artista também pode substituir a busca da cura de sintomas e
sofrimentos pela pulsão de morte, a exemplo de casos de suicídio das poetisas
Florbela Espanca (portuguesa) e Ana Cristina Cesar (brasileira).
Freud
era, na verdade, um apreciador da Literatura e quando foi agraciado com o
prêmio Goethe, em Frankfurt, pelo conjunto de sua obra científica, também foi
acusado de tê-la escrito em forma de romance. Ao que se sabe, Goethe, antes de
Freud, percebeu a importância dos sonhos, dos primeiros afetos e da necessidade
do autoconhecimento, chegando a tratar da necessidade de que cada pessoa fosse
capaz de conhecer a si mesmo e de julgar a si mesmo.
Enquanto
leitor, ele também foi um profundo conhecedor da obra de Shakespeare, notificando
a capacidade literária desse escritor em apresentar várias referências sobre o
inconsciente. Daí a escolha de nomes da obra shakespeariana para nomear conceitos
psicanalíticos: Complexo de Édipo, etc.
Estudos
psicanalíticos consideram que todo grande escritor, utiliza-se de seus
personagens como porta voz do seu desejo inconsciente. Isto não reduz a obra
literária a simples esquemas interpretativos, o artista sabe dar uma forma
particular às suas fantasias e alivia o leitor da carga maléfica das suas.
Dessa forma, o leitor pode realizar de forma simbólica, seus desejos
insatisfeitos encontrando prazeres compensatórios substitutivos através da
criação artística. Isto porque a obra permite uma identificação do leitor com
personagens do enredo, estabelecendo laços afetivos como uma das formas que o
ego utiliza para atender ao desejo pulsional.
É dessa
forma que o leitor constrói uma cadeia de representações que lhe pertencem e
não mais ao texto que lê. A exemplo, tratando do conto A cartomante de Machado de Assis, quando o texto trata de um
personagem e da sua ação num conflito, como seja, “Camilo saiu aflito da casa
da cigana”, trata-se de um Camilo e de uma cigana que só o leitor reconhece a
partir da representação que faz desses personagens.
É
possível dizer que, são referências conscientes e inconscientes que lhe ocorrem
durante a leitura, instaurando um momento de identificação com o texto capaz de
mobilizar investimentos afetivos, num ato de quase-amor, tão bem exemplificado
no conto Felicidade Clandestina de
Clarice Lispector, quando a menina abraça com afeto o livro de difícil
aquisição por empréstimo, nomeando-o de seu amante. A obra literária sempre irá
remeter o leitor a uma outra realidade extraliterária.
Enfim,
podemos dizer que a Leitura é fundante e tem o poder de desvelar o que está
oculto, abrindo espaços para uma consciência reflexiva e transformadora.
Ao
entender a singularidade do ato de ler o texto ficcional, numa perspectiva
psicanalítica, consideramos da maior importância que nossas escolas através das
práticas de letramento literário, possam garantir que habilidades e
procedimentos de leitura sejam prioridades para a formação do leitor
proficiente, capaz de ler-se a si mesmo como interpretante de sua própria vida.
*GRAÇA
LINS - Graça Lins é
escritora e pesquisadora da Literatura Infantil e Juvenil, graduada em Letras,
pós-graduada em Literatura Brasileira e em Políticas Culturais, mestre em
Psicanálise, e crítica literária pela Fundação Nacional do Livro Infantil e
Juvenil (RJ). É autora do livro Ozybil engole letras (Bagaço,
1995) do conto De amores e de Livros (Entre Laços), e articulista da Revista
Brazilcomz (Espanha). Coordenou as ações culturais da biblioteca do Porto
Digital e atualmente é professora dos cursos de pós-graduação em Literatura da
FAFIRE/PE, integrante da Oficina de Criação Literária Clarice Lispector, desde
2018. Artigo apresentado no Mestrado de Psicanálise e Educação,
pela aluna Maria das Graças Vieira Lins/ 2014.
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